Bem vindo a este espaço de troca e reflexão de ideias.

O QUE SENTIMOS PODE SER FALADO.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

DURMA BEM PAPAI.

- Você teve coragem de dizer isto?

- Tive!

- Eu estava sozinho e não haveria uma outra oportunidade como aquela.

- Rapaz você é louco.

- Você sabe muito pouco de mim para fazer uma afirmação desta.

- Mas você não poderia ter falado deste modo com ele. Se você é o que é deve agradecer a ele, a tudo o que ele fez por você.

- Você vive em um mundo que não é o meu. Eu nasci órfão e você só descobriu isto agora.

- Como nasceu órfão cara você tem família!

- Isto não garante que alguém vá conseguir tornar-se uma pessoa, porque para sentir-se assim você não pode ser uma cópia das gerações que te antecederam. Eu nasci a fórceps e você de cesariana é por isso que você o vê com outros olhos.

- Pode ser.

- Quando me sentei ao lado de minha mãe, eu a vi com um semblante sereno e tranqüilo. Olhando para o rosto de meu pai morto, dormindo sem roncar, eu percebi que o zumbido em meu ouvido havia cessado. Senti um silêncio reconfortante. Ele havia morrido e não fora eu que o havia matado. Morreu em função do modo como viveu. Seu coração havia crescido por ter sido alimentado durante anos de ressentimentos, amarguras e desejo de ser cuidado. O tamanho do seu coração corresponde a dimensão de sua incapacidade de amar.

Eu me sentei e minha mãe me deu um pacote cheio de folhas com escritos. Ela me entregou dizendo que era de meu pai. Eu passei uma parte da madrugada lendo todas elas e descobrindo que havia uma pessoa que também havia morrido com aquele que deveria ter sido meu pai. Eram canções, poemas e crônicas que falavam sobre o que ele sentia enquanto vivia, parecia que só ele havia descido aos infernos, ninguém mais.

Havia letras de sambas de roda falando de amor por mulheres que jamais o haviam amado. Mas como seria possível amar um homem em desespero consigo mesmo, odiá-lo seria sempre mais fácil. Foi assim que conheci meu pai, pela boca de minha mãe.
Ao lado do caixão resgatei um ser humano que não sabia existir dentro de meu pai; mas era só isso que era possível, porque como pai ele fracassou.
Eu pude odiá-lo e tudo que ele fez a mim. Portanto, quando deixei seu corpo naquela cova pude dizer: seu filho da puta, você jamais poderia ter sido pai. Falei isto alto para que todos naquele cemitério pudessem ouvir. Não me senti culpado nem ingrato, finalmente eu encontrei um senso de propriedade dentro de mim que me deu estes olhos de águia.

- Você os tem mesmo!

- Daquele dia em diante encontrei meu lugar na vida. O dia começava a nascer e eu fui até o jardim para respirar um pouco. Eu estava triste até o momento em que comecei a ouvir alguns pássaros contarem. Joguei um pouco mais de grãos no chão. Então começaram a surgir mais pássaros e cada qual mais colorido que o outro. Comecei a me entreter com aquilo tudo e a me deixar levar pelo espetáculo de movimento que estava diante de meus olhos. Era uma dança em que cada qual sabia sua hora de entrar, pegar sua comida e sair. O movimento dos pássaros me fez perceber que mesmo aquele a quem eu havia atribuído tanta importância não escapou da morte.

Talvez agora eu pudesse compreender a perda da experiência de Deus de que Salomé falava. Mesmo que meu pai nunca tenha me dado um presente, sua morte me trouxe a sensação de fazer parte da ciranda humana. Não há homem ou mulher que escape desta perda. Naquele momento esqueci de meu pai morto e agradeci profundamente a generosidade daquela manhã.

A morte de meu pai me aproximou em demasia da vida, talvez bem mais do que eu imaginava.

Não sei por quanto tempo fiquei ali olhando tudo aquilo, mas me senti grato por aquele presente que eu havia acabado de receber.

- Mas você não sente falta dele?

- Não. Sentiria se tivesse sido um homem sábio, mas ele não foi porque se tivesse sido teria conhecido o próprio filho. Eu fui um desconhecido para ele. Parece que só agora a experiência que tenho de mim mesmo corresponde ao que vivi. Eu nunca tive pai, isto só faz sentido com ele morto. Com ele vivo eu me sentia pior.

- Tenho que lhe dizer que estou emocionado com o que ouvi. Nós somos amigos há tanto tempo e eu não imaginava que este foi o caminho que te fez ser quem você é. Acho que nunca estivemos tão perto um do outro. A morte é impiedosa com qualquer imagem que tenhamos criado de nós mesmos e dos outros. Nisto reside sua beleza.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

PERTO DOS CINQUENTA.

-Quincas por que está de cabeça baixa?

-Não é nada.

-Como não?

-Sei lá rapaz. Vou fazer quarenta e seis anos Teo e o que eu consegui na vida? Casei-me tres vezes, tenho cinco filhos e cada uma das mulheres me exige um revezamento cinco por três. Além do mais não me sinto realizado profissionalmente apesar de ganhar muito dinheiro.

- Quincas você está pondo chifres em cabeça de galinha.

- Ethan, por que você não fica de boca fechada!

-Teo, o Quincas namora mulheres que matariam o Assioli de inveja, ainda bem que ele só tem olhos para as do Murilo. Tem aquele avião que me deixa de queixo caído... É convidado para qualquer festa. Ele é uma celebridade que tem a vantagem de ser muito conhecido por quem não o conhece.

-E que vantagem há nisto Ethan? O Quincas está numa idade difícil, aos quarenta a vida acaba meu amigo e a existência começa!

Depois dos quarenta o presente é sempre obscuro. Descobre-se a razão pela qual se utiliza o sucesso e a fama como um parâmetro para avaliar-se diante da escala status-evolutiva: a inexistência de contato com a própria infelicidade, da qual se tenta escapar através de uma vida superficial festiva. Fama e celebridade só são necessárias quando se vive na desventura. Se Tróia tivesse sido feliz quem se lembraria de Heitor, em terra de celebridade quem tem olho é cego.

A fama é como um rio que mantêm na superfície as coisas leves e infladas e arrasta para o fundo as coisas pesadas e sólidas. Dependemos da solidez para existir! Com trinta anos pode-se ignorá-la, mas aos quarenta isto se torna desastroso, pois se o prestigio é adquirido sem mérito as considerações são obtidas sem estima. Quem chega aos quarenta sem estima, mérito é o que não terá.

Mas então, o que faz um vencedor sentir-se como um perdedor, já que nos dias de hoje tanto a reputação quanto o crédito dependem apenas da riqueza que se guarda no banco? Afinal a fama e o sucesso não deveriam dar garantias de bem estar continuo?

Felizmente a adultez pode se consolidar aos cinqüenta quando um homem se torna sólido e consistente. Para tanto, é necessário que ele adote uma ética pautada no coração e não a na audiência do ibope.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

ZOLGA.

- As mulheres desapareceram! E a cada dia que passa, elas perdem brilho.

- Por que diz isto? Todo mundo sabe que existem mais mulheres do que homens.

- Porque é o que eu tenho vivido com as mulheres. Elas tinham uma luminosidade fascinante oriunda talvez da capacidade de se metamorfosearem. O que fazia com que cada mulher quando escolhida fosse a mais bela.

-E se tornasse na fantasia dos homens qualificada para cometer adultérios. Esta foi a razão pela qual precisou-se contê-la.

- A idéia de que uma mulher tem menos valor que um homem vem daí. Deste modo, acreditava-se que seria possível cortar-lhes as asas. Meu avô dizia que um homem prudente deveria unir-se sempre a uma mulher comprada, de preferência uma escrava, porque a esposa possui direitos vagos, a exemplo do que acontece nas separações quando o juiz acha que os filhos devem ficar com ela. Meu avô acreditava que as mulheres eram cisnes travestidos de humanos que voariam logo depois de encantarem os homens. Ele dizia que as mulheres deveriam ser vigiadas. Se o Rei Duncan tivesse tido a possibilidade de conversar com meu avô possivelmente não teria sido assassinado por Macbeth.

Você lembra da Rita? Ela levou muito de mim.

- Ethan comeu o pão que o diabo amassou com a ex-mulher. Ele me falou que aquela coral lhe deu na vida dois grandes momentos de prazer: um no casamento e outro na morte.

-Mas a mulher dele era casca grossa, peso pesado. Fez o que quis e não quis com os filhos, deixando Hera no chinelo. Tirou dele o que podia com o aval de juizes de visão curta e de advogados inescrupulosos. Que corja!
É impressionante, mas ela sempre acabava levando a melhor.

- Vem cá, quem foi Hera?

- Ela foi uma das esposas de Zeus. Usava de abusava da vingança, da violência e do ciúme. Por incrível que pareça seu nome significa aquela que protege. Mas uma mãe assim é o que filho algum precisa. Saiba você que para se vingar de Zeus, contam as más línguas, ela arremessou um de seus rebentos do céu para a terra.

- História punk. Isto me fez lembrar de como Clara ficava furiosa quando alguém se referia a ex-mulher do Ethan como alguém que valesse a pena. Ela dizia que por ser mulher e separada conhecia bem os estratagemas usados pela ex do Ethan. Ela a conhecia e afirma que ela era dissimulada e que mentiria sem qualquer escrúpulo para prejudicá-lo. Eu nunca vou me esquecer do dia em que ela chegou com a policia na casa do Ethan dizendo que ele havia seqüestrado os filhos, quando ela mesma os entregava a ele para passarem o final de semana juntos.

Eu não sei como Ethan agüentou tantas humilhações para ver os filhos. Por muito menos tem caras que se mandam. Eu sei que existem caras safados, mas como eles tem muita mulher bandida e sem caráter. Essa mulher se esvaziou de toda sua feminilidade e se encheu de crueldade e de prazer em destruir. Ela é um câncer.

- Ainda bem que nem todas são assim. Se fossem eu desistiria de procurar uma. Depois de passar um tempão ouvindo as conversas sobre as ex do Ethan, do Pedro, do Max, do Quincas e do João e o que elas faziam com os filhos, eu poderia dizer que mulher não presta. E ainda tem a Simone, aquela mineirinha que jogou seu bebê de dois meses dentro de uma lagoa.

- Ouvindo isso penso que nós não saímos da Idade do Ferro. Aquele tempo no qual emergiu a escória humana. Será que foi para isto que serviu a civilização, para encobrir a crueldade bárbara revestindo-a de tons pastéis, porque depende dela para se desenvolver? Ouvindo estas histórias percebo que nos tornamos criaturas arrogantes, avessas a justiça e que vivem mergulhadas na própria desgraça!

- Teo, em muitos aspectos acho que ainda não saímos de lá.

- Quando ouço homens falando de mulheres e vice e versa percebo que a magia desapareceu, tendo ficado em seu lugar a desilusão e a mágoa que o sexo não consegue aplacar.

- Me responde uma coisa, por que será que minha namorada fica uma arara quando eu digo para ela que não quero que ela vá comigo ao boteco beber com meus amigos. Ela nunca entendeu isto. Quando digo isto ela se ofende, fica magoada, sei lá!

- Meu amigo ela deve entender essa frase como se você estivesse dizendo que não a ama, porque se a amasse a convidaria para ir junto com você. Quando uma mulher não faz o que fazemos, ela não entende. Eu creio que muito do que dizemos ser uma mulher tem haver com nossas expectativas em relação a ela. Acho inclusive que o olho de um homem é sua expectativa, mas com uma mulher é diferente.

Para muitos homens e mulheres, a beleza é um atributo necessário a elas, mas basta que isto se confirme para que as dúvidas sobre o quanto elas são confiáveis comecem a existir. A beleza aproximou as mulheres tanto dos deuses quanto da maldição. Por que será que para nós ela ficou ao mesmo tempo investida de perigo e proteção?

- Talvez por que nós as tenhamos colocado como representantes daquilo que
precisávamos encontrar no mundo, mas não encontramos: calor e proteção. Por outro lado, para poder materializar o desejo de gratidão por receber do mundo o que necessitamos para viver: alimento e segurança. A mulher durante milênios esteve neste lugar sagrado do qual não fazíamos parte. Pagamos um preço alto por isso quando nos mantemos fora de lá.

Nós só descobrimos isto depois de uma separação, é ai que percebemos que tudo não passou de ilusão, uma tentativa chula para driblar o abandono. Tantas brigas teriam sido evitadas se tivéssemos aberto mão da fantasia de segurança, proteção e calor.
Deste jeito não conseguiremos ver quem é ou o quer uma mulher, aquela que como nós vive buscando conferir algum sentido a sua vida, mesmo que ele mude. Ela é alguém que como nós tenta vencer os desatinos da vida enfrentando-os com coragem e determinação.

- Eu continuo procurando minha Zolga, a última mulher. Ela que será tão incomum quanto eu, que não será minha cara metade porque ela não existe, mas que será cúmplice e companheira de caminhada. Ela que não me olhará como um inimigo ou um estuprador em potencial, alguém com quem não disputarei nada porque tudo é transitório. Uma mulher que queira meu amor como ele é, e que me ame pelo que eu sou e não pela sombra de mim, tantas vezes presente entre seus olhos e eu.

Por tudo isto eu agradeço as minhas ex-mulheres, é por isto que não consigo odiá-las. Sair de cada um daqueles casamentos foi um presente, uma experiência libertadora.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

ELES NÃO USAM REXONA.

Acreditamos no que aprendemos. Portanto, o juízo que fazemos de nós mesmos é originário desta proposição e nem sempre faz coincidir o que somos com o que acreditamos ser. É por intermédio desta fé que o crente aprende qual é sua identidade, pois só assim ele poderá contar pequenas mentiras sobre si mesmo.

Acontece o mesmo com a noção que um homem ou uma mulher têm de si mesmo. Homem age de um modo, mulher de outro. Foi acreditando nisto que a cultura determinou o que é atitude de homem e de mulher, como se isto esgotasse todas as possibilidades do existir.

Todo homem dependerá de uma prova para saber se é um homem. Dependendo de como se saia no teste, o indivíduo poderá ser reconhecido como homem. Mesmo que sobre a mulher não paire tal dúvida, o problema será saber quem a reconhecerá, haja vista que todos estão sobre as mesmas regras da cultura. Tenho razões para acreditar que isto mudou o foco do problema, transformando-o em um outro sem solução: a crença de que existem homens melhores do que outros e da necessidade de um juiz para aferi-los. O que um homem sabe sobre si está baseado nesta sucessão de reconhecimentos e julgamentos aos quais está submetido desde muito cedo. A experiência de si mesmo tem pouco valor neste sistema.

Por este motivo, existem homens que pensam que são mais homens do que outros. Eles já nasceram prontos e por esta razão não usam Rexona. Eles são juizes. Porém, seus sentidos podem não enganá-los a este respeito, mas o juízo sim. Acreditam que linhagem, berço, partido e religião os tornam especiais. Eles aprenderam que são excelentes por natureza e que sempre terão um público a sua volta para lembrá-los disto.

Todavia, em minha vida foi necessário contentar-me em aceitar algumas coisas, e dentre elas que existem homens que não usam Rexona. Mas que importância tem isto, se eu descobri que os que não usam Rexona quando comem sardinha, arrotam garoupa? A verdade destes homens nunca foi a minha, pois a busca da verdade me obrigou a apropriar-me de minha própria dor e a me valer da fantasia para acalmá-la. Eles não sentem dor. Com eles eu aprendi que a verdade quando é muito nua não excita. Eles preferem as meias verdades, como se elas existissem.

Acreditam que o fato de existirem já é suficiente. Não devemos ter dúvida de que a verdade que estes homens professam não é uma convicção inabalável, apesar deles tentarem convencer seu público de que sim.

Mas estas dúvidas podem se tornar vazias de sentido se não percebermos que eles são o que são por causa do excesso de fraqueza, da falta de simplicidade e de suas próprias limitações. Por serem incapazes de procurar onde estão suas maiores dificuldades a verdade nunca será escutada por seus ouvidos.

domingo, 18 de outubro de 2009

MULHERES DE PAPELÃO

- O que é isto Quincas, se pendurando na morena?

- Eu tropecei Teo!

- Cara que compra grande! O que você tem aí neste sacolão?

- Nada não...

- Como nada? Você acabou de sair do Sexshop, se atraca com esta mulher de papelão e diz que não tem nada no pacote.

- Deixa disso Teo. Quem consegue andar por esta cidade e não esbarrar nas popozudas espalhadas pelas calçadas e todas em tamanho natural. Sem falar da quantidade de revistas de sexo penduradas nas bancas, é só bunda suspensa sobre histórias em quadrinhos.

- Quincas, outro dia fui pegar minhas filhas para passear e fiquei constrangido de vê-las andando por estas Sapucaís nas quais se transformaram as ruas desta cidade. Deu-me um frio na espinha quando percebi que isto pode influenciá-las a entender o que é ser uma mulher.

Acreditou-se que a beleza salvaria o mundo e as mulheres foram incumbidas de fazê-lo, quer seja como mães ou esposas. Nos dias de hoje, a beleza entendida como dom de Deus, bem como a melhor carta de recomendação foi relida pelo bisturi. Do belo extirparam o sublime, fazendo as mulheres acreditarem que um amor construído sobre a beleza não morrerá com ela. Hoje, ficou extremamente empobrecida a experiência necessária para que uma menina cresça sem pressa e descubra que ser mulher não é ser de papelão.

Casanova dizia que a beleza é uma outra forma de verdade, contudo, sabemos que ele não se referia a coelhinhas, ao silicone nem a lipo. A beleza sempre foi uma promessa de felicidade, mas do que estamos falando se dela também extirparam o pudor?

A beleza quando não é sublime e não tem pudor transforma uma mulher num extraordinário monumento pneumático. O sublime e o pudor se associados à beleza conferem a mulher sabedoria e nada é mais gratificante do que amá-la por isto. A sabedoria retira da beleza a certeza de que ela é dispensável à vida, redirecionando sua exuberância para a virtude.

Alguns homens sabem que aquilo que os atrai em uma mulher raramente os vincula a ela, a beleza que seduz poucas vezes é aquela que desperta o amor.

sábado, 17 de outubro de 2009

TE AMO MAMÃE.

- Por que ele pintou este quadro?
- Max, esse quadro foi pintado depois da morte de um amigo, uma homenagem. Ele não pintou pensando em sua mãe, mas na do amigo. Eu vou te contar o que estava escrito em seu diário.

Dali tinha um amigo querido. Eles eram muito próximos, portanto, ele sabia bem o que acontecia na vida de Felipe. Seu amigo era filho de uma família de banqueiros, os quais conquistaram reputação viabilizando negócios em diferentes paises. Seus pais nunca suportaram Dali, pela forma como se dirigia a eles; anarquista apaixonado, dizia o que lhe passava na cabeça. As comparações que fazia a mesa durante os longos almoços, deixavam a mãe de seu amigo furiosa. Mas em uma coisa ele tinha razão, os grandes olhos azuis da mãe de Felipe eram gelados e certeiros como os de um crocodilo.

Pelo que sei, ela não se intimidava com nada, mas pediu ao filho para que nunca mais trouxesse o amigo a sua residência. Ela escolhia a dedo os empregados e só admitia os que teriam a perder caso a desafiassem. Eles eram seus olhos quando ela não estava em casa. Certa vez um deles lhe contou que Dali disse a Felipe que ela era Carmem travestida na doce Micaela. Por este motivo ela proibiu esta amizade.

Olhando para a vida que Felipe levou, percebo que as situações limite nunca são algo raro ou extraordinário, mas partes do cotidiano, do que é comum a cada um de nós. Isto me fez pensar que na maioria das vezes suportamos muito mais do que é necessário. E para tanto, precisamos endurecer nossos olhos e corações, pois só assim estaremos habilitados para suportar fardos.

Felipe não conseguiu vencer esta empreitada, portanto, não podia compreender quem era sua mãe, ele percebia o que lhe interessava. Via sua mãe em pedaços, como se vê um clichê, porque vê-la inteira era insuportável.

O pai de Felipe sabia vestir com elegância sua prepotência. Certa vez ele viajou com ambos para Genebra. Por problemas de saúde ficou internado em um hospital suíço para tratar uma crise de asma. Por dois dias esperou seus pais, mas lá eles não apareceram. No final do segundo dia eles ligaram para ele dizendo que não poderiam encontrá-lo, mas nada mencionaram sobre seu aniversário ou seu estado de saúde. Quando desligou o telefone Felipe sentiu náusea e uma sensação de estar sendo esmagado e empurrado para dentro do nada que acreditava ser. Pensou em voz alta: “eu sei que quando eles fazem isto comigo se sentem vitoriosos”.

Felipe apesar de não ter sido poupado do trauma do nascimento se sentia um herói diante daqueles pais, pois sobreviver a eles em si era um ato de glória. Quando eu lhe contei sobre minhas angústias de marido ele me falou:
- Você ainda não aprendeu que no inferno só se entra acompanhado, você descobre que está só quando chega lá, afinal para que serve uma paixão?

Passado alguns dias, Felipe falou com sua mãe sobre o mal estar que sentiu durante os dias no hospital, mas ela mãe retrucou afirmando que ele estava sendo dramático e que os esquecimentos foram propositais. Disse que seus pais sempre fizeram o melhor por ele e que queriam que ele aprendesse a lidar com situações difíceis, porque seria o futuro presidente do banco.

- Nós não esquecemos de nada, disse ela, mas queríamos que você pensasse tal coisa. Meu filho fui eu quem o gerou, nunca se esqueça disto. Se existe algo que você jamais deve deslembrar é quem é sua mãe. Eu sempre desejei que a vida lhe sorrisse. Saiba que uma mulher é fraca e chora facilmente como eu agora. Pois pense meu filho no quanto seus amigos já me causaram dor. Só eu o amo de verdade.

Seus pais tinham habilidade para convencê-lo de que mesmo estando errados, estavam certos. Esta forma de manipular Felipe, Dali execrava, mas Felipe se conformava com sua condição de objeto.

- Felipe, sua mãe serve a seu pai e ele a ela. Sua mãe despreza sexualmente seu pai porque ele não é aristocrata como ela, e você estando sempre a mão é cômodo.

- Que absurdo você só pode estar bêbado.

- Meu amigo sem perceber, você naufraga. Sua mãe te transformou em um serviçal e se você não se cuidar, vai para cama com ela. Esta senhora distinta, de discreta elegância e voz macia é uma das mulheres mais ardilosas que já conheci. Saiba que ser mãe não é condição para que uma mulher deixe de manipular e ser cruel. A maternidade não transforma as mágoas algumas mulheres retirando-as de seu coração, pelo contrário ela pode deixar mais turva sua visão. Você só sobreviveu porque ela quis, ela sempre soube fazer bom uso disto quando se tornou sua credora.

- Dali saia da minha casa.

A partir daquele dia eles nunca mais se falaram, eu só soube dos fatos pelo diário que Dali escreveu. A verdade é que a mãe de Felipe só o enxergou até o momento em que ele serviu para preencher sua barriga vazia. Depois do nascimento, o buraco novamente se instalou e ela o transformou em uma presa, mantida a rédeas curtas. Mesmo que ele tivesse namoradas e amantes, essas mulheres nunca foram uma ameaça para ela.

Quando o pai morreu, a mãe se apossou de Felipe. Eles passaram a dormir juntos, sob o pretexto do sofrimento vivido por ela pela perda do marido. Foi assim durante anos. Uma semana após a morte se sua mãe, Felipe meteu uma bala na cabeça.
- Esta foi a história que originou este quadro! É por isso que você vê a silhueta de Jesus Cristo, o Sagrado Coração; abaixo dele Dali escreveu: “eu escarro várias vezes com prazer sobre o túmulo de minha mãe”.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

ENTREVISTA: MASCULINO E FEMININO.

1- DIANTE DE UMA CULTURA QUE PRIORIZA A ESTÉTICA E O EXTERNO, OS CONCEITOS DE MASCULINO E FEMININO SÃO SUFICIENTES PARA A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE CONTEMPORÂNEA?

Considero masculino e feminino como categorias culturais que servem para mediar instancias da vida psíquica com as da vida social (papeis). Definidas desta forma, estas categorias podem ser consideradas como operadores de cultura, cuja função é articular estados emocionais a visão de mundo vigente em determinado tempo da história. Os papéis definidos para homem e mulher são resultados deste processo. Podemos dizer que, masculino e feminino, instrumentalizam a visão de mundo em vigor e difundida pela cultura ocidental. Uma vez incorporadas pelos indivíduos como parâmetros para leitura e interpretação do mundo, se tornam suas identidades sociais. Todavia, nas sociedades míticas este processo não acontecia desta forma.
Houve um momento, mais precisamente no século XVII, no qual a verdade deixou de residir no ato descrito pelo discurso, passando a estar no que dizia: chegou o dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado, para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação com sua referencia. Desta maneira, Baudrillard se refere à transição para as sociedades mecânicas, aquelas que ficaram conhecidas como sociedades hiper-reais e da simulação. Dito de outra maneira, sociedades que valorizam o externo, o que é superficial. Enrique Rojas, psiquiatra espanhol, diz que vivemos no tempo do homem light, nele o café não tem cafeína, o açúcar não tem glicose, a manteiga não tem colesterol e as pessoas não tem substância.

Para as sociedades míticas, masculino e feminino eram consideradas invenções que procuravam aproximar os seres humanos dos deuses, da representação de heróis, ou ainda histórias por meio das quais se sabia quem era homem e mulher. No final do século XX, eles passaram a ser considerados o destino artificial do corpo sexuado. Baudrillard nos chama atenção para o fato de que no contemporâneo, masculinidade e feminilidade são usadas para referir uma experiência em que o jogo de comutação dos signos dos sexos, que se opõe ao jogo de comutação anterior da diferença sexual presente nas narrativas míticas, se torna, na perspectiva dos dias de hoje, o jogo da não diferença sexual.

Desta maneira, a noção de identidade muda de registro, deixando de ser um campo de afirmação no jogo das diferenças para se transformar num campo de possibilidades mediadas pela tecnologia. Para tanto, este panorama criado pelas democracias de mercado determinou que as categorias em questão existem para garantir o estatuto de tais sociedades, mais do que servir como um recurso que dá suporte a imaginação na busca de soluções singulares. Assim sendo, será a partir delas que as individualidades serão determinadas e não o inverso. Para sociedades que valorizam o mercado e a economia há um esvaziamento das qualidades subjetivas enquanto o modo como cada qual experimenta a si mesmo. Por sua vez, masculino e feminino se transformaram em catalisadores dos processos econômicos de acordo com os quais as individualidades dos consumidores são determinadas. Á vida ficou atrelada e reduzida às operações mercadológicas, não existe vida sem elas.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

VLADO.

Na primeira vez que o vi ele tirou uma foto minha, mas eu não pude saber quem era porque seu rosto estava atrás da câmera, e desapareceu completamente quando disparou o flash. A rapidez com que fez isto me pegou de surpresa e eu ouvi suas risadas junto a de outras crianças. Todas as manhãs quando eu descia para tomar café, encontrava um grupo de meninos brincando na praça em frente ao meu hotel. Eles estavam sempre juntos e se hospedavam nos dois quartos ao lado do meu. Uma coisa me chamou atenção, todos eles tinham um tipo físico diferente das crianças de Albaicin. Eles eram loiros e tinham olhos azuis. Na Andaluzia é possível encontrar crianças com estas características, só que elas não falam russo. Enquanto esperava o garçom trazer meu café eu tentava adivinhar o que elas estariam fazendo em Granada. Fui retirado de meus pensamentos pelos sinos da Igreja de Santa Ana e conclui que elas deveriam estar querendo aproveitar o verão andaluz, que diga-se de passagem é muito quente.
Eu estava hospedado em um hotel na Plaza Nueva, que ficava próximo a subida para Alhambra. Meu quarto tinha uma pequena sacada e dele era possível ver os portais da Igreja. No domingo, todos os restaurantes da praça colocavam mesas ao ar livre que eram rapidamente preenchidas por famílias residentes. Neste dia, eu geralmente era acordado pelas badaladas dos sinos e corria para ter meu café sossegado. Quando apareci no balcão, Vlado fez sua foto. Eu estava sonolento, espiando para saber se todas as mesas já haviam sido ocupadas, quando de repente surge aquele menino de uns 6 anos na sacada e me fotografa.
Isto aconteceu algumas vezes ao longo daquela semana e o que era uma brincadeira começou a me incomodar. Como eu passava os dias em Alhambra acompanhando a restauração do Palácio Nazaríes, chegava em casa exausto e esquecia a brincadeira.
Na segunda-feira, fui acordado antes dos sinos pela voz de Yúsuf. Ele estava nervoso e falava um espanhol truncado apesar de ter saído do Marrocos há uns dez anos. Ao lado do hotel havia uma cadeia de lojas marroquinas e Vlado ao fotografar alguma coisa deixou a máquina cair sobre o toldo da loja de Yúsuf. Ele era bravo mas tinha bom coração, esbravejava para cima com a câmera na mão enquanto o menino o olhava assustado e choroso. Acabei descendo, conversei com ele e peguei a câmera de volta.
Fui até o quarto do garoto para entregar a maquina. Eu esperava encontrar adultos loiros de olhos claros, mas não. Quem me recebeu foi um casal de Sevilha. Contei-lhes o que havia acontecido e devolvi a câmera. Eles chamaram Vlado que me agradeceu com uma foto. Voltei para meu quarto intrigado com aquela situação. O que estaria fazendo um casal de espanhóis com cinco crianças russas em Granada?
Naquele dia não olhei para a fotografia, deixei-a sobre a mesa e fui me preparar para trabalhar. A cena do casal com os meninos me veio a cabeça varias vezes, mas eu não encontrava uma resposta. Há pouca amizade no mundo, sobretudo entre adultos e crianças, menos ainda se elas forem estrangeiras.
A noite fui a sacada olhar a praça. No verão muitos ficam nas ruas até a madrugada. A cidade é encantadora nesta época. Eu esperava que Vlado aparecesse com sua máquina, mas isso não aconteceu. Peguei a foto e vi que nela não havia foco só movimento embaçado, a silhueta do meu corpo descontinuada pela luzes dos lampiões do hotel.
- Foto de criança!
Eu queria encontrar algo mais que pudesse explicar o que significava aquela situação. Será que eles estariam traficando crianças? Eu não teria como conversar com os meninos porque eu não falo russo. Decidi me aproximar dos adultos.
No sábado os encontrei no saguão do hotel. Aproximei-me do homem puxando conversa sobre o atentado que acabara de acontecer em Londres. A mulher se mantinha reservada, afastada olhando as crianças. Convidei-os para um café, mas ele me disse que estavam esperando o ônibus para Málaga. As crianças veriam o mar pela primeira vez.
- E no domingo, vocês farão o que?
- Vamos a Alhambra.
- Eu trabalho lá! Domingo é um dia difícil, vocês precisarão de senhas para entrar. Mas eu posso conseguir um passe. Seria um prazer acompanhá-los neste passeio.
- Eu conversarei com minha esposa.
- Fale com ela e deixe uma resposta na recepção do hotel.
A recepcionista me entregou um bilhete que confirmava meu convite.
No dia seguinte acordei antes mesmo dos sinos tocarem. Eu estava com fome e pedi ao garçom que me trouxesse tapas e torradas com azeite. Estes petiscos de peixe são maravilhosos. Antes que eu terminasse a refeição Vlado me viu e saiu correndo em direção. Eu pude olhá-lo e enxergar seu rosto. Nele havia uma história por desvendar, eu pensava: amigos podem surgir de situações incertas.
- Max esta é minha esposa Laura.
- Muito prazer. Martin vocês já tomaram o desjejum?
- Não. Quero te apresentar as crianças. Estes são meus filhos; Antonio e José e seus amigos Vlado, Micha e Leon.
- Eu pensei que todos fossem russos. Seus filhos são parecidos com eles!
- É verdade, no inicio não eram. O convívio tornou possível que uma amizade sólida nascesse entre ele, as crianças não têm etnia. Eles se doam com a alma livre, espontaneamente. Nós adultos esquecemos como se faz. Vamos terminar a refeição, não queremos abusar de sua gentileza.
Quando o ônibus chegou, eu estava confuso. Tudo aquilo que eu havia imaginado não fazia o menor sentido. Eu fiquei envergonhado comigo e propus ser o guia que os conduziria no passeio.
Costumo entrar em Alhambra pelos Jardins dos Adarvares, neles nosso século desaparece. Enquanto as crianças brincavam nos labirintos de Partal, seguimos para Daraxa, lá seria possível sentarmos em torno de uma pequena fonte para conversarmos.
Ficamos alguns minutos em silêncio, pois a beleza era tanta que nos revigorava. Neste jardim eu nunca me senti só. Ele foi projetado para que a luz e o perfume das flores façam companhia a seu visitante. Aqui a única realidade possível é a dos sonhos e a arquitetura serve apenas de suporte a poesia abençoada por Maomé.
Do mesmo modo, Martin e Laura percebiam as necessidades daqueles meninos antes mesmo deles falarem. Essa generosidade criava uma atmosfera que dava mais vida aquele lugar. As pequenas ofertas que eles faziam as crianças as tornavam luminosas, abatendo os obstáculos e desfazendo dificuldades. Em Alhambra percebemos que só Deus é vencedor, jamais os homens. Estar com eles abriu dentro de mim uma porta que eu já havia fechado. Eu sempre me interessei pelas pessoas, mas nunca gostei delas.
Há um detalhe interessante neste lugar. Todos os jardins foram construídos usando técnicas de irrigação para que fosse possível cultivar flores no deserto. Os árabes sabiam criar seus oásis. Por muitas vezes lá caminhei para irrigar meu coração, o Palácio de Al-Hamar era meu continente.
- Há quanto tempo estas crianças estão com vocês?
- Um mês.
- Seus filhos falam russo?
- Somente eu.
- Eles são parentes?
- Não, elas moravam na região onde ocorreu o acidente de Chernobil. A explosão matou a maior parte de suas famílias. Vlado se expôs a explosão da usina e ficou sem enxergar algumas semanas.
- Que coisa horrível! É impressionante como a civilização extrema gera a barbárie extrema. Ainda hoje, o mundo dos homens se mantém constituído em torno da pólvora, da imprensa e do cristianismo. Veja no que deu! Que poder de merda é esse?
- Max, todos que residiam naquela região foram removidos para outros lugares. Famílias viviam ali a seis gerações e o acidente destruiu toda esta história, transformando o lugar em cemitério vivo. O solo está contaminado, o gado, o leite. O urânio come a vida daquela gente. As crianças precisam sair da Bielorrussia pelo menos dois meses por ano, para que eliminem a radiação do corpo.
- Realmente, o homem deve ser inventado a cada dia. Quanto tempo será necessário para que essa radiação desapareça?
- Talvez mil anos. Vlado foi o primeiro a ficar conosco, depois vieram os outros dois. Nós lhe demos esta câmera de presente porque ele entrou em pânico quando foi se despedir de nós. Dizia que o mesmo aconteceria conosco. Desde então, fotografa o que vê, como tentasse preservar tudo que poderia amar. No mundo de Vlado não há mais nada para ser amado porque a radiação para si o que havia.
- Ele não tem a quem recorrer?
- Não. Estes meninos só contam com famílias como a nossa. Na Espanha são cerca de 600 crianças das 3500 que vem para a Europa todos os anos. Eu já havia visitado Alhambra anteriormente. Este lugar tem uma historia semelhante a destas crianças. Os reis católicos quando vieram para cá destruíram uma parte do que existia. Antes deles este lugar servia de refugio para pacíficos e guerreiros. Hoje quando caminhava dentro do Quarto Dourado, compreendi o que o poeta Zamrak escreveu nas suas paredes: “nesta morada a prata fundida escoa entre as pedras, água e mármore se confundem e Deus fala pelo vento”. Aqui eu me sinto singular como as colunas deste quarto. A civilização usa a destruição para prosperar. Infelizmente o que aconteceu na Bielorrussia não se restaurará jamais, Alhambra teve um futuro melhor.
- Eu concordo com você Martin em um aspecto; a inimizade presente entre os homens perdura escondida na radiação que está dentro do corpo de cada uma destas crianças. Contudo, eu discordo quando diz que não há reparo possível. O que você e Laura estão fazendo por estas crianças elas nunca experimentariam se o acidente não tivesse acontecido. A adversidade nos obriga encontrar o que não nos desagrada. Estes meninos crescerão respeitando os estrangeiros que rechaçariam, se desenvolverão amando quem é diferente deles. Eles estão tendo a chance de respeitar quem os acolhe mesmo que não sejam de suas famílias.
A violência de Chernobil serviu para quebrar a estupidez do preconceito que segrega e agride tanta gente. Essa é a prata fundida da qual fala o poeta e que vocês estão oferecendo a estas crianças, pois a compaixão torna menor o sofrimento quando aponta algum sentido para a dor.

OS DISSIMULADOS.

- Nós havíamos combinado outra coisa. Vocês me deram a impressão de que concordavam comigo, mas quando apontei os problemas se calaram. Eu fiquei sozinho mostrando para eles as contradições e a falta de coerência deste projeto. O que é que houve?
- É claro que o projeto era uma porcaria, você tinha razão. Nós ficamos com medo de sermos retaliados.
- Vocês se calaram por muito pouco. Servi-los não é o mesmo que ter uma “vida de cão”, como dizem, pois o cão pelo menos vagueia a seu prazer, enquanto vocês promovem a luxúria e os vícios destes caras, porque para vocês o prazer é estar com eles. É disto que gostam, contar para meio mundo que eles são seus amigos? Vocês se esqueceram mesmo que um homem adulto não precisa de chefe.
- Um homem tolera o narcisismo de uma mulher quando a erotiza, mas o de um outro homem só se for possível admirá-lo. Esses caras são muito vaidosos, só querem aplausos. Vocês conhecem algum vaidoso inteligente? Rapaz eles são só imagem! Quando vocês dizem que eles são geniais e que se orgulham de trabalhar com eles, estão se fazendo de imbecis.
- Você tem razão.
- Esses caras são falsários que adoram uma intriga. Eles pensam que compram qualquer um. Vocês se lembram da última concorrência? Eles acabaram com o Pedro, eles não tem o menor escrúpulo, eles são a contravenção. Consideram os outros um nada e estão sempre querendo se equiparar a quem tem mais do que eles.
- Nós fomos enganados!
- Ninguém é enganado, Tomás. Vocês enganaram a si mesmo. Agora, é melhor se enganar junto a seus amigos do que enganar os seus amigos. Foi o que vocês fizeram comigo só porque têm medo de enxergar a vida com os próprios olhos. Vocês entram em pânico quando se vêem diante do que a liberdade pode lhes causar, ficam sem saber no que poderiam se transformar.
- E como ficarão nossas famílias caso a gente não continue neste negócio?
- Quanto mais submissos forem, mais serão subjugados por estes egoístas.
- Calma Teo, isto vai mudar.
- Meu bisavô dizia que a esperança é a segunda alma dos infelizes. O que vocês estão fazendo com a vida de vocês?
- Sendo amigos destes caras nossa vida ficou mais fácil!
- A vida quando parece fácil para um homem perspicaz certamente parecerá difícil para o tolo; e freqüentemente será difícil para o perspicaz quando for fácil para o tolo. Eu não conheço esses caras de hoje. Vocês não querem ver quais foram as conseqüências de suas ações. Para eles, vale tudo.
- Teo, eles têm entrada em qualquer lugar, o mundo acontece segundo suas regras e não as suas. Você pensa o que? Nós não somos nada diante deles.
- Você fala do lugar de quem cresceu acreditando que a única alternativa é submeter-se: se não pode derrotá-los, junte-se a eles. Essa é uma psicologia chula que diz que nada pode ser feito. Você se alimenta desta crença meu amigo. Você se tornou seu próprio carcereiro, quanto a isto eu não tenho o que fazer. Agora eu entendo porque vocês recuam diante deles.
-Por que?
- Vocês abriram mão do poder de se inventarem a cada dia. Vocês admiram caras que são previsíveis e que não surpreendem, mesmo que estejam sempre renovando na crueldade e na cretinice.
- Que mal há em ser grande e poderoso?
- Poderosos talvez, mas grandes? A grandeza escapa a compreensão, estes caras são previsíveis. E isto não combina com dissimulação. Apesar da arrogância, eles não têm a sofisticação necessária para receberem este adjetivo.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

TITÔNIA.

- No seu corpo havia muitas tatuagens, mas dentre todas elas uma me chamou a atenção. Em sua testa, pouco acima das sobrancelhas, estava escrito: caso perdido. Acharia natural se não fosse seu tipo franzino e reservado, sempre tenso. Por vezes ele passava a mão nos cabelos, puxando-os para baixo numa tentativa de esconder aquela marca. Eu sabia pouco sobre ele, apesar de termos estudado muitos anos juntos. Naquela época ele era retraído, mas não lhe faltava alegria nos olhos. De qualquer forma eu me perguntava quem teria feito tal coisa com ele, será que teria sido um desejo seu escrever aquilo no rosto?
- Max, eu sempre achei este cara esquisito.
- Você acha qualquer um esquisito caso não se pareça com você. Eu o acompanhei mais do que outros, não sei se por compaixão ou solidariedade. Ele era um cara sozinho, mas você há de convir que seus desenhos eram ótimos. Sempre havia algum menino que quando apanhava do mais forte ia recuperar sua estima batendo nele. Ele era a lixeira daquela escola, sobre ele eram jogados a fraqueza, o preconceito e tudo o que ninguém gostava em si mesmo.
- Max esse cara já nasceu torto, só você mesmo para ficar perdendo tempo tentando entender o que esse maluco fez. A exceção dos desenhos, ele nunca teve sucesso em nada do que fazia.
- Ethan, de uma coisa você pode estar certo, a vitória sempre tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Todo mundo quer tirar uma casquinha do vitorioso. Agora quando alguma coisa sai errada ninguém quer assumir nada. Esse sujeito nasceu órfão apesar de ter tido pai e mãe. Eu me lembro de tê-lo encontrado varias vezes sozinho empinando pipa no meio do pasto. Ele sempre aparecia com algum ferimento causado pelas folhas de milho. Não era o abandono que me atraía nele, mas a vida querendo se desentortar, se contorcendo e procurando saída. Foi assim que eu me aproximei dele. Naquela época eu tinha uns dezesseis anos e ele dez. Ele não tinha idéia de que o pior estava por vir.
- Nós nunca conversamos sobre isso.
- Certo dia eu fui me encontrar com ele na sua casa. Sua família era proprietária de um sitio onde se plantava milho e soja. Era um belo lugar, mas para chegar até a casa você tinha de atravessar a plantação, por isso eu combinava de encontrá-lo na estrada. Aquele dia ele não estava, então eu fui até sua casa. Quando cheguei perto chamei pelo seu nome várias vezes e quando me aproximei da casa vi o vizinho saindo abotoando as calças e a mãe do Lucio, logo atrás, terminando de fechar o vestido. Eles passaram por mim e nada falaram, eu entrei na casa e vi Lucio sentado no chão com as mãos nos olhos cantarolando alto. Eu levei algum tempo para acalmá-lo e sairmos dali. Ele me disse que o vizinho ameaçou matá-lo caso ele contasse para alguém o que viu. A mãe de Lúcio gostava de se envolver com homens violentos.
- Seus pais eram separados?
- Eles nunca se separaram, mas quem pagava a escola de Lucio era o tal vizinho. Seu pai era um zero a esquerda. Naquele momento eu me senti responsável por ele. Através de seus olhos pude ver tudo aquilo que me disseram existir no inferno. Na expressão de seu rosto encontrei todos os suplícios que tememos, mas que a vida havia reservado exclusivamente para ele. A esperança tinha desaparecido de seu olhar. Nós saímos dali e eu não sabia o que fazer, não sei porque, mas eu o levei para o puteiro, assim foi sua primeira vez. O cheiro, as luzes e a sujeira daquele lugar me faziam crer que naquele lugar seria possível manter alguma ilusão sobre a vida. As putas têm o poder de transmutar o mal em bem, eu sempre as vi como bruxas.
Eu conhecia bem aquelas mulheres e sabia que ali ele poderia encontrar um pouco de conforto. Na época ele tinha uns quatorze anos.
- Cara você levou um menor para zona?
- Você acha que para ele as coisas poderiam piorar? Você é otimista mesmo.
A consciência não fez dele um covarde como havia acontecido conosco. Ele viu o que nenhum de nós conseguiria suportar e não sucumbiu. Ele ainda não enfrentou a morte como nós já fizemos muitas vezes quando nos submetemos. O Lúcio pode ser qualquer coisa menos um covarde.
Ele fez do Mangue sua segunda casa, foi uma época boa.
Eu me lembro que dali em diante ele começou a escrever e alguma esperança preencheu sua vida. Meses depois seu rosto ficou coberto de acnes e a tristeza voltou para lhe fazer companhia; para suportá-la, ele começou a beber. O que escrevia ficava cada vez melhor, mas a critica chamava seus textos de literatura decadente.
- Que cara azarento!
- Eu vejo diferente, acho que vence duas vezes quem vence a si mesmo. Este cara venceu seu avesso quando o transformou em objeto de suas acrobacias. Ele se tornou um acrobata quando se fez escritor. Por outro lado, não havia mulher alguma que desejasse estar com ele, sua expressão ficou repugnante. O pouco amor que havia guardado usou comedidamente para escrever seus textos, através de cada um deles mantinha viva a fé de um dia encontrar sua Titônia, quiçá Beatriz. Por muitos anos eu torci para que isso não acontecesse por saber que caso ele se frustrasse novamente, sua vida perderia o sentido. Até que no terceiro ano do segundo grau ele se apaixona pela garota mais bela da turma. Não havia a menor chance para ele, durante meses foi motivo de deboche e gozação de todos.
Mas parece que o que sentia por ela o fazia superar cada dia vivido, e você sabe que quem supera vence. Lúcio foi vencedor. Ele fez um esforço monstruoso para continuar acreditando que poderia ter aquela mulher, para tanto precisou encontrar nas putas um amor de mãe que o fez sentir-se homem e assim imaginar que seria possível encontrar Titônia.
- Max eu me lembro, ele queria que ela o acompanhasse na festa. Foi um fiasco. No dia da formatura ele estava tão bêbado que enfiou um saco de supermercado na cabeça para esconder o seu rosto coberto de espinhas. Todo mundo se assustou quando o viu. O pior foi que ela dançou com ele depois que cobriu seu rosto, mas dele se afastou quando o manteve descoberto.
- Eu sempre acreditei que o triunfo sem desafios não tem glória, mas com ele os desafios foram em demasia. Eu passei a acompanhá-lo para evitar suas bebedeiras. Foi nesta época que resolveu tatuar na testa a frase: Caso Perdido. Talvez para zombar de si mesmo e com isto encontrar algum poder sobre sua vida. Eu posso imaginar porque ele fazia o que fazia.
- Você sabia o que ele fazia quando desaparecia?
- Não do modo como os jornais noticiaram. Titônia era a única maneira dele se manter vivo. Ela lhe foi tirada dos braços muitas vezes, arrancada com muita violência, aos poucos e em pequenas doses. Lucio tinha raízes muito curtas para sustentá-lo na vida. Nos vendavais seu esforço se tornava descomunal. Ele amava a vida como nenhum de nós conseguira compreender. Eu o ouvia dizer: “te amo vida misteriosa, cheia de choros e regozijos, horas de sorte e dolorosas, se sorte não vais me dar, pois bem ainda tenho tua dor”. Eu conheci Salomé através de seus versos.
- Max ele se deitava com mulheres mortas. Ele roubava os corpos dos necrotérios, isso é doente.
- Ele nunca abriria mão de Titônia, como era impossível procurá-la dentre as vivas lhe restou somente os cemitérios. No dia em que foi pego no necrotério roubando o corpo da mulher morta em acidente, ele escapou e a levou para o mar. Despiu-se, e com ela nos braços se afogou. Para ele a imaginação nunca perdeu a força. Vivendo o que viveu foi pura sabedoria se iludir, no momento em que isto deixou de ser possível ele foi para os braços de sua Titônia, afinal não havia mais razão para continuar buscando.

domingo, 11 de outubro de 2009

O JUIZ É CEGO É O ADVOGADO QUER SER RICO!

Teo estava cabisbaixo com o resultado da última audiência. Sua ex-mulher se fazia de vítima diante do juiz e se valia de todas as prerrogativas legais, pois elas estão a seu favor. Afinal, mãe é mãe, esta parece ser uma fantasia recorrente para os magistrados quando se trata de educar e cuidar de filhos. Mesmo que as mulheres não tenham nascido mães, o fato de serem mulheres já é suficiente. Do mesmo modo que há uma relação entre a cortesã e a santa, existe uma outra entre o juiz e o carrasco. “Se raspares o juiz, encontrareis o carrasco”, dizia Vitor Hugo.
Mas por que será que os magistrados não conseguem pensar nisto?
Sabemos que o tamanho do estrago causado por um mau juiz é bem maior do que aquele causado por um arrastão. Um juiz pode aniquilar a alma enquanto um arrastão o bolso. Percebemos que quando interpretam a lei estão legislando em causa própria, pois não há nada mais subjetivo do que uma interpretação da lei. Se um juiz se esqueceu do quanto é comum o juízo humano se enganar, é porque neste caso foi sua impotência que o fez magistrado. Foi ela que o conduziu ao lugar que ocupa.
Não existe nada mais feroz do que um juiz impotente, cego e dependente de um bom advogado para paparicá-lo. Este juiz quando identificado com corruptos e abusadores, cria mecanismos esdrúxulos para beneficiá-los. Se fosse exclusivamente mesquinho sua avareza seria tolerável, mas não, ele imagina-se pródigo e sua arrogância é detestável. A injustiça é uma das faces da hipocrisia da lei que retém o que é leve, deixando propositalmente escapar o que é grande e pesado.
Do modo como Teo o descreveu é possível pensarmos em quem este juiz seja, considerando a sensação que ele causou-lhe durante a audiência. Suas decisões foram desprezíveis, ele se coloca como se fosse um grande rei cujo vício é exercer seu poder sobre terceiros. Ele pensa que não é mortal e pelo orgulho que exala parece ser filho da ignorância. É um covarde haja vista que só consegue alcançar os objetivos que estão no seu intimo protegido pelo cargo que ocupa.
Sentado numa cadeira de espaldar alto disposta sobre um tablado estava o juiz. A sua frente havia uma mesa e sobre ela muitos papéis confirmando que a aparência sempre é mentirosa. Mas o silêncio sobre isto era guardado por aquele que na cruz deveria proteger a cabeça do magistrado para que ela não tombasse. Do alto de sua impotência ele olhava com desdém para todos como se fosse possível ameaçar alguém com sua arrogância.
Muitos juizes roubam, só que faz com uma autorização para fazê-lo. Ele diariamente rouba a fé que os homens têm na justiça.
- Não se dirija ao juiz, disse o advogado.
- Por que? Perguntou Teo.
- Por que é assim que funciona.
- Mulher alguma o beijaria, pensou Teo, porque de seu rosto brotavam pústulas de pus, que ele secava no decorrer da audiência. Ele virava as folhas para frente e para traz como se quisesse mostrar o quanto era importante. Ele olhava somente para os advogados e o fazia por cima de uma armação de pesadas lentes engorduradas. Sua barba rala dava volume a um rosto magro, e era usada para esconder as fistulas e também seus dentes amarelos. Ele era dentuço e usava uma gravata de quinta.
A vida não foi generosa com ele, olhando para seu rosto era possível ver sua alma e descobrir que sentença e justiça podem ser exemplos de disjunção.

sábado, 10 de outubro de 2009

ENTRE UM PROCESSO E OUTRO.

Ethan havia recebido uma notificação sobre um novo processo judicial. Sua ex-mulher sentia-se permanentemente lesada e lhe cobrava sucessivas indenizações. Agora era a vez dos seus primos fazerem o mesmo. Ethan ficou preocupadíssimo com estes fatos, temendo que o próximo processo fosse movido pelos pais de sua ex-mulher, seguido de um outro de seu atual marido. Nesta família, pensou ele, o negócio é ser indenizado.
Mesmo dizendo que está bem casada e com dois filhos, a sensação de ter sido roubada não tem fim. “Como você escolheu essa mulher para casar?”, perguntou-lhe uma amiga. Ethan respondeu que a conheceu de fato depois que se separou.
- Rapaz ela te cobra como alguém que nunca teve pai, comentou Teo. Ela é assim desde quando eu a conheci, só você não via. Aquele jeitinho manso e desprotegido, ela sempre usou como um disfarce para o ódio e a inveja que sente até hoje.
Parece que a inveja deixou a ex-mulher de Ethan estrábica. Ela se sente eternamente faminta.
Apesar de tentar mordê-lo com sucessivos processos judiciais, ela não consegue digerir absolutamente nada em sua vida. Sua alma emagrecida atesta que seu caráter sucumbiu. Ela carece de ódio para preencher o vazio que lhe devora, e para tanto, acredita que Ethan lhe roubou algo precioso. Com isto pode se sentir vitoriosa pelo menos uma vez na vida, mesmo que mergulhe na sujeira mais rala e etérea. Essa Pandora sem jarro, de caráter volúvel e inteligência cínica, sente-se feliz quando exala por onde passa o mal que carrega.
A despeito da destruição que causou, este tipo de atitude é expressão do seu esforço para escapar da mediocridade em que vive. A ex-mulher de Ethan é alguém que não se pode respeitar, pois ela não sente vergonha do que faz.
- E como se acaba com isto? Perguntou Teo.
- Com arte, respondeu Ethan.
- Você só pode estar brincando, retrucou Teo.
- Esta situação me deu a chance de poder transformar o que eu acreditava ser uma mulher no que foi minha ex-mulher.
- E o que ela foi pra você?
- Uma mentira que me permitiu conhecer a minha verdade.
- Você acha que ela nasceu assim? Perguntou Teo.
- Não, porque nenhuma mulher nasce mulher: torna-se, dizia uma escritora francesa.
- Rapaz, o que terá acontecido para que a sua se tornasse mesquinha e invejosa?
- Talvez a vida estranha que ela tenha levado, seus aspectos mais rudes e cruéis. Uma criança que vive uma história de abandono daquele porte sofrerá vertigens no que diz respeito ao juízo que formará de si mesma. Ela precisa esconder o que lhe aconteceu e acima de tudo, duvidar do que aconteceu. Só assim terá uma chance de sobreviver: mentir para si tantas vezes quantas forem necessárias para que isto se transforme em uma verdade.
Um amigo dizia que na casa de seu avô havia uma atmosfera cheia de opressão e depressão, bem como inimizade recíproca de todos contra todos. Nesta casa, o ódio envenenava os adultos e as próprias crianças. Creio que ela tenha vivido algo semelhante e para escapar disto, precisou acreditar em muitas mentiras sobre si mesma. Eu fiquei sendo aquele que a lembra disto e isto gera muito ódio. Ela não suportaria conter tanto ódio dentro de si. É uma situação miserável.
Com esta mulher Ethan descobriu que somente a miséria não é invejável.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

PAI, POR QUE NÃO TE ABANDONEI MAIS CEDO?

- Fico exausto quando encontro meu pai. Ele fala dele o tempo todo com um entusiasmo sufocante.
- Eu o imaginava diferente disto.
O barulho deste restaurante está me deixando tonto, eu não consigo te ouvir. Por quê essa gente fala tão alto?
Garçom, nós vamos pedir.
- Max, estar com meu pai é o mesmo que dobrar o volume de voz destas pessoas. Mesmo quando estamos frente a frente, fala como se estivesse diante de uma platéia. Ele fica entediado quando conversa só comigo, precisa de público para mostrar que é o primeiro em tudo que faz.
Quando está com raiva descarrega em mim. Eu acabo me sentindo responsável por isto. Ele só fica calmo quando me diminui, e põe em dúvida o que faço. Eu sei que pratico o mesmo com meu filho, mas não consigo fazer diferente.

Ethan tem um pai egoísta e competitivo que não admite ser superado por ninguém. Cada tropeço do filho ele comemora como uma consagração de sua superioridade. Considera-se um modelo de pai, marido e cidadão sentindo-se mais inteligente, preparado e criativo que qualquer pessoa. Ethan só conseguia sua atenção quando se comportava como um devoto zeloso que o elogiava continuamente sem afrontá-lo em sua vaidade.
Ele diz que seu pai gosta de poder e de interpretar o mundo a sua maneira, reafirmando o tempo todo que não existe um modo melhor que o seu para compreender a vida. Educou seus filhos para que fossem platéias de suas histórias, mantendo-os subordinados a ele através da dependência financeira ou emocional. Inseguros, seus filhos se enrolam facilmente. Nenhum deles é capaz de suportar a solidão sobre a qual se funda a existência e por isso, mantêm-se atrelados ao pai às custas de mergulharem suas vidas mais na infelicidade do que na prosperidade.
Ethan preservou este referencial paterno perfilando-se no seu avesso, ao se tornar pai. Suas atitudes com seu filho são reações ao modo como o pai lhe tratou: é bacana porque seu pai não foi; só diz sim porque apenas recebeu não. Tornou-se permissivo e liberal por considerar a autoridade paterna algo ruim. Deste modo, não estabelece nenhuma distinção entre ele e o rebento, vertendo para este último tudo o que lhe falta. O pimpolho é tratado do modo como Ethan gostaria de ter sido.
Sem a lucidez necessária, transformou-se num pai mais problemático ainda. Ele é um forte candidato a ser mais celerado do que seu pai, haja vista que suas atitudes com seu filho fortalecem as distorções emocionais deixadas pelas malfeitorias paternas.
Ethan não aprendeu que admiramos nossos pais por eles terem sido justos e honestos: caso contrário, é melhor apenas suportá-los. Diante disto, aquele que não tem um bom pai deve arranjar um. Foi o que fez Dante quando escolheu Virgílio para acompanhá-lo na travessia do labirinto da vida, conduzindo-o até sua Beatriz.
Se ele compreendesse suas próprias motivações, possivelmente teria conseguido imaginar soluções melhores e mais criativas para sua vida. Falta-lhe sensatez para perceber que seu pai esteve presente na sua vida somente no momento de sua concepção, afora isto tudo mais que sabe sobre ele é ilusão. Muitas vezes choraram os filhos pela culpa do pai, mas este pranto é necessário porque sem ele só há cegueira, tropeços e perdição.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

HOMEM E INVEJOSO.

Em todo o Brasil ouvimos falar sobre o mal-estar criado pelo governo Lula. A perplexidade gerada pela corrupção foi sendo transformada em desencanto. Na medida em que todos os culpados não foram punidos, o país mergulhou num clima de pessimismo político. Frases do tipo: "o poder corrompe, isto acontece em todo lugar", ou "todo mundo rouba", são ouvidas por toda parte, atestando um estado de derrota daquela esperança que venceria o medo. Se o cenário político interfere no estado emocional dos eleitores, em contrapartida podemos pensar que tipo de complexo emocional faz parte do atual governo, que usou um discurso ético para chegar ao poder.
Por que será que o discurso de campanha não pode ser materializado? Que demanda emocional tal discurso se prestou a atender?
Quando observarmos alguns fatos, perceberemos que há uma relação entre governo, champanhe e avião caríssimos, cartão de credito no valor de quatro milhões, viagens internacionais, ganhos paralelos oriundos do abuso de poder do cargo, uma legião de funcionários públicos contratados sem concurso e um programa social assistencialista. Omitindo o nome Partido dos Trabalhadores poderíamos dizer que tais fatos diriam respeito a um governo de ricos conservadores.
Em tese a classe operária teria chegado ao poder. Mas o que será que fez com que ela adotasse rapidamente os hábitos dos governos reacionários que tanto criticaram? Por que será que no Brasil quando grupos chegam ao governo esquecem quem são e o que escreveram? Talvez seja por que a classe política brasileira se organize segundo um mesmo mito. Quem sabe seja por isto que as alianças acontecem de formas esdrúxulas. Este mito tem por preceito o dito: O MUNDO ME DEVE porque sou o mais inteligente, o mais vaidoso, o mais explorado, o mais pobre, o mais ético. Assim, um político justifica o uso da máquina pública em beneficio próprio, usando-a como se pertencesse a ele.
Não importa de que ideologia ele faça parte. Um vaidoso desejará sentir-se membro do primeiro mundo e um operário desejará ser parecido com algum antecessor, a exemplo de J.K. O que move ambos é uma inveja travestida em favor à população ao invés de responsabilidade pública.
Para o invejoso convém que o outro caia. O político invejoso sente que foi eleito para servir a si mesmo. A inveja é um sentimento que existe para fazer frente à impotência diante da vida. Quando a inveja é grande fica-se estrábico, corre-se o risco de não ver mais nada direito, principalmente que há em si falta de qualidades para desempenhar um cargo. Por este motivo, o invejoso é um avarento, pois quanto mais adquire mais aumenta a própria sede, tornando licito qualquer coisa que lhe dê prazer, eliminando de si a critica sobre o que faz. A inveja serve para dar ao impotente uma ilusão de quem ele é, dela se originam sua arrogância e prepotência.
O medo é um sentimento recorrente para o invejoso e determina hoje o clima em Brasília. Foi por medo de deixar de usufruir as regalias do poder que o atual governo beneficiou através de alianças, todos aqueles que durante anos se opuseram às suas idéias. Infeliz do país que ainda precisa de heróis, pois é impossível fazer os homens felizes por meio da política. A esperança neste governo desapareceu e em seu lugar apareceram a omissão e a arrogância de políticos gananciosos.
Os que chegam ao poder desejam obter regalias mais do que realizar o projeto de campanha. Por este motivo ele não se concretizou. Em verdade sempre aspiraram pelos mesmos benefícios de seus antecessores: o primeiro ato político foi tomar um champanhe. Todavia, nunca tiveram coragem de assumir publicamente que querem luxo.
O complexo emocional que move grande parte dos políticos brasileiros se compõe de inveja, impotência e narcisismo. Por sua vez, o que transborda em Brasília chega até as ruas fazendo crer à população que quem trabalha é otário. Lênin tinha razão quando dizia que o partido é a mente, a honra e a consciência de nossa época.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A VORACIDADE DAS BESTAS.

- Isto não está certo. Você está equivocado.
- Como equivocado? Vai dizer que você nunca quis chutar o pau da barraca? O cara humilhou-o, fez ele de palhaço! Você queria que ele não reagisse, ficasse calado como otário? Se eu tivesse no lugar dele faria o mesmo.
- Você está maluco, o cara é policial e além disto estava bêbado.
- E daí, o sujeito estava querendo tirar onda, então ele atirou e matou. O corpo ficou no chão esperando o rabecão. Depois dessa ninguém vai querer crescer em cima dele.

- O impacto de um tiro parece que apaga a memória, daí a gente esquece do próximo.
- Talvez não seja o tiro, mas o medo de que uma bala nos atravesse.
- E homem lá tem medo?
- Que bobagem, tempos difíceis! O outdoor com o governador sorrindo estava bem acima do defunto. Eu olho o corpo do morto, a propaganda do governo a seu lado e percebo que tem uma relação entre elas. Meu irmão é a mesma relação que há entre a favela e o asfalto.
A gente só não percebe isto porque nosso coração ficou duro demais, parcial. Vemos todos os dias uma do lado da outra e não conseguimos pensar no pacto que existe entre ambas e que mantém uma tensão.
- Como ying e yang.
- Deixa de falar besteira. Eu digo que o asfalto enquanto aspiração da favela se vale desta para esconder a própria indecência. Melhor dizer excrescência. A pornografia do asfalto fica esquecida enquanto se escuta o funk das cachorras, do mesmo modo que o som do tiro desvia nossa atenção das parcerias que o fabrica. Se a bandidagem não der samba, certamente dará um comercial.
Essa conversa me lembra Federica. Ela ficava enfurecida toda vez que falávamos sobre o dia em que Picasso voltou a Espanha e fez algumas declarações sobre o comunismo. Ele disse que havia deixado de ser comunista, o que poderia ser visto até como sinal de evolução, mas daí a celebrar sua volta do exílio com uma exposição agenciada pelo franquismo! E a Guernica e Barral? Será que ele esqueceu do que viveu?
- Max na época Picasso tinha cerca de 80 anos.
- Quando a fama ou a idade nos faz esquecer quem somos é porque a favela se rendeu ao asfalto, bem como ele a ela. Veja como isto acontece no Brasil, a galhofa e a brincadeira servem para fazer a gente aceitar qualquer coisa seja de político, banqueiro, mecânico ou trombadinha. Ninguém faz qualquer relação entre essa atitude e os tiros que ouvimos diariamente. Esse padrão de aceitação do ilícito virou mania nacional.
- A Senhora Montseny teria posto a boca no trombone em seu programa de rádio.
- Por que estes pactos não são percebidos como tiros? E se os traficantes têm armas por que não as usam para mudar o governo? Ao invés disso, eles promovem a necessidade deste cenário que está aí, fazem com que este governo seja necessário. Os traficantes se tornaram empregados do governo. Isso me lembra o quanto a caridade depende da miséria para existir. Eliminar a miséria seria exterminar a caridade. Acabar com o tráfico seria o mesmo que eliminar este governo que está aí.
As estratégias usadas para produzir esquecimento ficariam em maus lençóis. A França de Bonaparte deixou Victor Hugo no exílio por dezenove anos por ele não ter renunciado suas idéias.
Se olharmos para o que aconteceu com muitos exilados brasileiros, veremos que eles não só esqueceram do que pregavam como rapidamente incorporam os valores que renegavam. O exilado brasileiro se divorciou de sua experiência no exílio para se transformar em alguém da situação. Tanto o sociólogo vaidoso quanto o operário ambicioso são produtos do pacto favela-asfalto.
- Que sina a nossa!
- Eu lá acredito em sina! Está para nascer uma liderança que se dedique aos interesses coletivos e abra mão dos pessoais. Se depender destes homens nós vamos continuar tendo deputados que são ao mesmo tempo investigados por uma de CPI e dela relatores. Isto faz parte deste novo tipo de masculinidade que anda por aí. É a bandalha tomando posse no planalto, é o coroamento da malandragem e da intimidação retratadas pelo traficante. Temos presidentes travestidos de bem intencionados que só pensam em usufruir as mordomias do colonizador, mestiços se dizendo aristocratas, religiosos pedófilos e uma legião de vítimas sociais que descobriram este novo filão para se darem bem. A única diferença entre eles é a data de nascimento.
- O que podemos fazer diante disto?
- Já sei, uma campanha! Vamos colocar adesivos nos carros.
- Não basta.
Como cães de cemitérios, esses caras se alimentam dos espíritos dos mortos. Eles dilaceram a memória de que fomos inquietos um dia, tínhamos fé uns nos outros, éramos capazes de sentir alegria no espírito. Nós acreditávamos que onde havia verdade não haveria corrupção.
Mas nos tornamos civilizados e inventamos a filosofia do progresso como um modo de encobrir a decadência que se instalou desde que passamos a acusar de primitivo o homem selvagem. Enquanto homens de revolveres, herdeiros do bang-bang, passamos a carregar no cartridge holder nosso poder e alma. Passamos a aceitar os tiros com alguma indignação porque sem isto não conseguiríamos manter os pactos necessários para nos conservar no purgatório.
- No inferno você quer dizer!
- Não no purgatório mesmo. Nós não estamos qualificados para entrar no inferno, lá eles são mais criteriosos e rigorosos. Nós seríamos barrados, somos mornos demais!

domingo, 4 de outubro de 2009

BANDIDOS.

- Ethan eu já paguei ao banco 45 mil dos 40 que me emprestaram e ainda devo 35! Sabe lá o que é isso?
- Sei. Eu deixei 10 mil na poupança e eles me pagam 0,7% de juros ao mês. O restante empresta a você e lhe cobram 128% de juros ao ano. É assim que funciona, disse Ethan.
- E ainda por cima dizem: é legal, e daí?
- Rapaz, por que será que aqui o próximo posto de um ex-ministro das Finanças é ser membro de Conselho de banco privado? E o de ex-presidente é ter uma coluna em jornal de opinião e fundar centros de estudos latino-americanos no exterior?
- Será que existe alguma relação entre a mídia, o governo e os bancos?
- Claro que sim! Ela é necessária para nos fazer acreditar que vivemos no mais perfeito dos mundos: somos cidadãos e consumidores! Não existe nada melhor. E aqueles presunçosos de esquerda se fossem competentes poderiam oferecer um outro ponto de vista, mas não eles também querem estar no castelo de Caudas. Esta esquerda brasileira nasceu incendiária, mas acabou como bombeiro de tudo aquilo que denunciavam.
- Você sabe que eu fiquei confuso quando estava no banco. Eu olhava para todas aquelas propagandas com belíssimas fotos de gente abraçando gente, cachorro e papagaio, avo beijando neto, jovens felizes e seguros do futuro. Eu sem saber como fazer para pagar os juros imaginava que o errado era eu. Por que será que eu não estou feliz como eles?
- Porque você é o filho de uma...
- Não precisa responder.
- Desculpe, mas hoje ninguém agüenta viver fora de uma mentira e se for coletiva melhor ainda.
- Esses caras deitam sobre a paciência deste povo. O brasileiro por ser mais conservador do que aqueles que governam nunca será temido. Só são arrojados quando incendeiam ônibus, saem atirando na rua e fazem laranja virar suco. Como escapar a esta mediocridade que se diz instruída, mas que se quer sabe o que é ser douta.
- Estão longe disto meu amigo, longe. E ainda existiu um sujeito que dizia que política é magia.
- E é mesmo!
- Veja só como é que todo mundo acreditou na fábula do operário pobre que ia mudar o mundo e se esqueceu disto no meio do caminho porque gostou do mundo que queria mudar. Isso é mágica.
- Como é que a gente faz para tudo isto desaparecer?
- Dê gargalhadas meu amigo, ria muito de nossa covardia por tolerarmos este estado de coisas.