Bem vindo a este espaço de troca e reflexão de ideias.

O QUE SENTIMOS PODE SER FALADO.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

VULCANO.

- Ethan, você bebeu demais.
- Max que bobagem eu posso muito mais do que isso.
- Vamos embora, eu estou cansado.
- Vai, depois eu vou, você não está colado em mim.
- Como você vai dirigir se não consegue chegar no banheiro? Cara, você tá bêbado!
Ou você vem comigo ou te levo a força! Aconteceu alguma coisa pra você beber tanto?
- E precisa acontecer alguma coisa pra se beber? Eu gosto de beber com a galera.

- Teo, quanto foi o jogo?
- 2 a 1 pro Flamengo, e poderia ter sido três se aquele juiz babaca não tivesse dado impedimento.
- Foram todos ao Maraca?
- Todos! Foi bom demais, o estádio tava lindo cara, lotado.
- E a que horas você chegou em casa?
- Cara, quando acabou o jogo, nós fomos pra um boteco e saímos de lá muito tarde. A rua tava entupida de torcedores. Bebemos todas! A rapaziada cantava o tempo todo: “uma vez flamengo,...” Eu não tinha vontade de ir pra casa. Maravilha acordar segunda com a vitória do meu time.
- Cara, você não está se separando?

- Eu nunca consegui firmar meus olhos nestas duas direções. Nasci estrábico, vesgo. A bebida e o futebol escaparam das minhas mãos, eu não sei os motivos.
- Por que diz isto Lúcio?
- Porque eles entraram na minha vida pela porta do sofrimento, prazer pra mim sempre foi isto: ausência de dor. Nasci de um casamento cujo amor existia apenas entre meus pais, para mim não sobrou nada.
- Mas seus pais se amavam muito, isso era visível pra qualquer um!
- É verdade, só que não sobrou nada pra mim, eles ficaram com tudo. Max, eu sou o fogo que incendeia águas, cria da fúria do mundo, nasci coxo meu amigo. Sempre me senti como a parte que não quer ser vista. Saiba que onde a beleza impera, os feios devem mancar, viver em cavernas distantes. A alegria durante muitos anos foi uma aspiração em minha vida, um sonho que sempre desejei realizar.
- Nós sempre gostamos de você Lúcio.
- Você sempre gostou de mim, Max. Os outros queriam me ouvir para desatar os nós de suas vidas ou juntar as pontas sem sentido. Nada além disto, eles tinham asco de mim, medo do que lhes causaria estar com alguém que não fazia aquilo que valorizavam: eu não bebia e ainda por cima não podia jogar futebol.
Uma vez estava indo para casa. O ônibus não estava cheio, mas suas janelas estavam fechadas porque chovia bastante. Passavam das oito da noite.
Por alguma razão meus pensamentos foram sugados para o inferno e minha respiração ficou mais curta do que era usual. Eu só tinha olhos para a luz vermelha dos semáforos, eu contava cada um deles como uma tentativa de distração, e com isto poder sair daquele torpor. Eu queria chegar em casa apesar de saber que para mim isto era me encontrar com o abandono.
A angustia cresceu ainda mais e sem saber o que fazer com ela vi que as luzes que saiam dos carros se esparramavam pelo asfalto e se fundiam umas as outras. As ruas ficaram manchadas de um vermelho intenso, cada sinal que se fechava era indicação de que dentro em pouco toda a cidade estaria banhada por aquela cor. Fiquei gelado e com a boca seca. Olhei para as pessoas dentro do ônibus e percebi que somente eu estava vivendo tudo aquilo, ninguém mais. Eu aguardava sem saber o que mais poderia me acontecer.
No ônibus haviam homens escutando o jogo em um pequeno rádio de pilha, mulheres sonolentas e atentas as suas bolsas. No inicio eu pensei que não fosse suportar enxergar daquele modo, existir tendo um olho tão particular, forjado com o que havia de mais cruel e duro. Foi no inferno que me descobri único, o céu nunca foi lugar para mim, eu sempre o vi social em demasia.
O trânsito parou, minha respiração ficou mais curta ainda. Uma mulher que estava a meu lado percebeu o que acontecia comigo e me perguntou se estava tudo bem. Quando eu me virei e ela pode ver meus olhos, percebi que ficou mais assustada do que eu. Começou a gritar que eu estava passando mal, ela ficou desesperada. O desespero sempre foi um esforço sem glória para escapar do inferno. Eu sabia que do inferno só sai quem o enfrenta. Eu não queria a piedade de ninguém, enquanto eu me deslocava até a porta ela falou em voz alta: “meu filho só Jesus salva!” Não sei por que me lembrei de meu analista e pensei que ele também dizia o mesmo: “Lucio, preste atenção ao que vou lhe dizer: só Lacan salva!”.
Desci do ônibus perdido tentando manter minha atenção na rua onde morava um amigo meu. Eu estava muito assustado com a intensidade daquilo tudo. Chegando lá ele me disse para sentar e me perguntou: você quer beber um uísque?
Eu pensei baixinho, só falta ele me perguntar se quero assistir ao jogo de futebol. Não deu outra. Quando desço ao inferno eu preciso me conter, aprendi isto aos poucos. Mas no inicio era o inferno que vinha até a superfície e deixava sempre toda a cidade vermelha. Foi preciso descer muitas vezes e me isolar do mundo, até transformá-lo em uma propriedade minha. Não pense você que isso me fez uma vitima da vida. Saiba você que foi no inferno que construí minhas principais ferramentas, lá encontrei meus talentos e também o modo de usá-los.
Eu fiquei na casa dele até me refazer um pouco. Mesmo tendo crescido sem uma casa, ela me dava mais conforto do que o mundo. Cada vez que o inferno tragava meus pensamentos, eu percebia que muitos tentavam evitar o tombo se agarrando nas bordas das escarpas. Depois de um tempo eu deixei de resistir e desci até o mais fundo de mim mesmo, lá onde eu não sabia quem eu era. Eu lhe digo que algumas vezes cheguei a ver no despenhadeiro alguns sujeitos dependurados com radinhos de pilha, ou mamando em garrafas de uísque. Eles tentavam se meter dentro delas para escapar. Aumentavam o rádio, ou a dose da bebida para que não ver nem ouvir nada. Mas, engraçado, o inferno não faz barulho, o som que escutavam era de suas unhas escorregando e tentando se prender nos rochedos, som de pura resistência de quem já caiu e não admite.
Max que cara é essa? Parece que viu vampiro!
- Estou te ouvindo. Continue...
- Eu digo que depois de enfrentá-lo eu me tornei um de seus melhores ferreiros.
- Um ourives você quer dizer.
- Pode ser. Aprendi a manipular o fogo que me consumia e com isto, passei a poder transformar tudo. Não havia metal que eu não conseguisse verter em carne, ferro que não pudesse ser convertido em ouro. Assim fiz Titônia, eu a criei de argila e depois lhe soprei vida. Mas não importa se este é seu nome, o que importa é que todo homem corre o risco de se casar com uma mulher que seja bela, mas vazia, apaixonada pela guerra mais do que pelo amor. Uma mulher assim pensa que pode preencher seu vazio com a incandescência do ourives. A que primeiro amei, tentava ter de mim o que lhe faltava, colapsou-se de inveja. Mas sem esta experiência eu jamais aprenderia com maestria a ciência do ligar e do desligar.
Quando me movimento, crio, me faço visto além da feiúra que me fez quem sou. O que sei de mim nasceu disto, porque para ser tão coxo, foi preciso uma explosão para me arremessar para longe do banal. Só mesmo a embriaguez dos dias comuns para me tirar de onde me fiz.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

OS FILHOS DE HOMER SIMPSON

- As pessoas que foram golpeadas estavam sentadas à mesa do lado. Tudo foi muito rápido. Quando eu olhei tinha um cara caído no chão e outros três chutando seu rosto. As luzes da boate se acenderam. Eu fiquei impressionado com o ódio estampado na cara daqueles sujeitos.

Teo ficou mobilizado com o incidente de sábado. O silencio se instalou durante a sessão. Toda aquela violência havia chegado até nós buscando algum sentido.

O espanto foi se desfazendo e lentamente foi possível chegarmos até onde a intensidade daquele ódio havia lhe tocado. Ele experimentou algo semelhante quando criança. Tinha dois anos e comia como uma pessoa daquela idade. Órfão e desempregado, seu pai não o compreendia e partiu para cima de Teo dizendo que este estava lhe desobedecendo porque comia daquele jeito. A mãe e a avó se interpuseram entre Teo e seu pai, mas não conseguiram evitar que ele lhe desse uma surra. Neste caso, a criança foi espancada mesmo.

Teo só se lembra dos olhos arregalados do pai, os mesmos olhos que reencontrou naquele sábado. De onde vem todo este ódio?

Diferente do pai de Teo, os pais daqueles homens jovens os apoiaram, eximindo-os de qualquer responsabilidade sobre o ato. Podemos pensar se o ódio dirigido ao outro não é um modo de se livrar do ódio por si mesmo. Qual seria o dilema daquele que se odeia tanto a ponto de transbordar sobre um outro? Talvez a atitude dos pais nos dê uma pista. Tendo piedade dos filhos revelaram que foram negligentes quanto as reais demandas afetivas (limites e compromisso) necessárias à formação do caráter. Esta postura indulgente da família mantém estes homens impotentes na vida e o ódio que sentem funciona como um tônico para vivificá-los.

Possivelmente durante anos sentiram-se como a Criatura dos pais. Hesitantes não puderam propalar a raiva e a solidão que emergiram desta condição. A violência destruidora dirigida à vítima é aquela que não pode ser dirigida aos pais. Sabemos que é impossível odiar nesta intensidade alguém que conhecemos, mas, arrasar a vítima é retratar o diâmetro do próprio aniquilamento. Só destrói quem já se encontra arruinado.

Para os agressores, uma das vantagens deste mundo é poder odiar e ser odiado sem se conhecer. Contudo, odeia-se quem se teme. O tamanho da violência empregada pelos agressores é proporcional ao quanto à vítima lhes atemorizam. Mas por que ela lhes intimida? Porque eles se identificam com ela, saibam: antipatias violentas quase sempre são suspeitas e traem afinidades secretas.

Se Teo fosse o agente poderíamos dizer que de vítima ele se transformou em agressor. Mas ele fez um caminho muito diferente.
Quando foram condescendentes com a atitude dos agressores os pais revelaram o delito que praticaram contra seus filhos: o filicidio.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O ESTUPIDO

-Tá indignado com o que Alex?
-Teo, quem eles pensam que são? Tenho mais visibilidade e capacidade de articulação que todos juntos. Com quarenta anos já acumulei dois milhões e meio de dólares e naquele grupo, quem tem?
-Acho que nele seus milhões não valeram nada!
-É inveja, despeito...
-Pode ser, mas também pode ser que para eles a moeda seja outra.
-Teo, na sociedade do vale tudo existe outra moeda que não seja poder e grana?
-Pra você não, mas para um artista sim.
-Eu sou um ótimo artista!
-Alex pensar que é um artista não o transforma em um.

No passado, alguns homens conheceram e sentiram os temores e horrores do existir. Para que fosse possível viver, tiveram de colocar entre eles e a vida, a exuberante criação dos deuses: a palavra. O existir se tornou possível porque acreditaram que poderiam escapar de seus temores se aproximando do mundo dos deuses. Tal crença transfigurou a vida, deixando a morte em suspensão.

Para superar a morte os homens inventaram a arte, garantindo que a transgressão enriquecesse a vida. Por que será que esta prerrogativa desapareceu das sociedades atuais?

Muitos homens sem fé tentam superarem-se exclusivamente através da aquisição de poder e dinheiro. A fé na superação brota da experiência e senti-la é perceber que a existência independe da materialidade a que ficou reduzida. Sem fé não compreendemos nada, ou pior compreendemos equivocadamente. O que a fé procura a inteligência encontra e sem ela esta última se converte em estupidez.

Homem ainda é sinônimo de racionalidade, inteligência e ação. Mas a racionalidade emerge dos sentidos, a felicidade não está condicionada a um numero infinito de dinheiros e a inteligência depende da fé. Todo homem deveria saber que a razão de sua infelicidade vem da dificuldade em não saber como ficar em repouso e com isto aprender a lidar com seus temores.

Que esperanças há para uma sociedade que abriu mão de sua responsabilidade neste aprendizado, acreditando que pode extirpar de si todos os temores da existência, fazendo-os parecerem exclusivamente males sociais? Nela a sabedoria desaparece, ficando a experiência relegada à pobreza do vale tudo, onde a liberdade deixa de ser o direito de fazer o que as leis permitem, passando a se afirmar como possibilidades para a perversão.

VINCULOS.

- Helena, esta época me emociona. O céu claro, os contrastes do dia me fazem perceber relevos na vida. No verão eu perco esta dimensão, tudo fica chapado e superficial.
- Ontem eu estava falando sobre isto com uma amiga. No inverno eu respiro, me sinto mais perto de mim, mais tranqüila, Teo.
- Homens não conversam sobre isto entre si. Eu particularmente fico constrangido em dizê-lo a um amigo. Não sei o que ele poderia pensar a meu respeito. Estes assuntos só falo com namoradas ou amigas.
- É uma pena, porque quando falamos de nós mesmas, do que sentimos, aprofundamos nossa amizade. Isto nos dá a sensação de que existem outras como nós. Desfaz a impressão de isolamento e solidão.


Nós não nascemos apenas para nós mesmos!
Dentre todos os problemas da vida podemos dizer que romper a própria solidão e comunicar-se com os outros, sejam os que mais nos aproxima de nossa humanidade. O apelo de estar continuamente em ação faz com que muitos homens conheçam tudo, menos a eles mesmos, tornando-os reativos, rígidos as variações de seus sentimentos.

Por sua vez, estar continuamente em atividade é um modo de diminuir a borrasca em que se transformou seu caminho. Milhares de homens percorrem suas vidas sem conhecer a satisfação de tê-la vivido, são sobreviventes. A coragem para viver muitas vezes é covardia camuflada, um ardil usado por aqueles que tentam tornar suportáveis suas vidas.

Para sentir a fama que o reconhecimento confere, é preciso consumir-se, perturbar-se, lutar, errar, recomeçar do inicio e jogar tudo fora, e novamente recomeçar e lutar e perder eternamente. A calma é uma covardia da alma. Isto eu aprendi com um amigo. Sem o esforço para superar a si mesmo, a vida é pobre. Muitos homens medem suas vidas pelo número de colheres de sucesso, mulheres de papelão e reações violentas, temendo que desapareça do mundo o que lhes acena como referência.

Só estabelece algum vinculo afetivo com alguém, aquele que alcança a sabedoria de distinguir os outros e a lucidez de conhecer a si mesmo. A incapacidade de se vincular revela que há homens que usam um escudo impenetrável para se relacionar, pois mobilizados pela vergonha se protegem da existência.