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O QUE SENTIMOS PODE SER FALADO.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

VLADO.

Na primeira vez que o vi ele tirou uma foto minha, mas eu não pude saber quem era porque seu rosto estava atrás da câmera, e desapareceu completamente quando disparou o flash. A rapidez com que fez isto me pegou de surpresa e eu ouvi suas risadas junto a de outras crianças. Todas as manhãs quando eu descia para tomar café, encontrava um grupo de meninos brincando na praça em frente ao meu hotel. Eles estavam sempre juntos e se hospedavam nos dois quartos ao lado do meu. Uma coisa me chamou atenção, todos eles tinham um tipo físico diferente das crianças de Albaicin. Eles eram loiros e tinham olhos azuis. Na Andaluzia é possível encontrar crianças com estas características, só que elas não falam russo. Enquanto esperava o garçom trazer meu café eu tentava adivinhar o que elas estariam fazendo em Granada. Fui retirado de meus pensamentos pelos sinos da Igreja de Santa Ana e conclui que elas deveriam estar querendo aproveitar o verão andaluz, que diga-se de passagem é muito quente.
Eu estava hospedado em um hotel na Plaza Nueva, que ficava próximo a subida para Alhambra. Meu quarto tinha uma pequena sacada e dele era possível ver os portais da Igreja. No domingo, todos os restaurantes da praça colocavam mesas ao ar livre que eram rapidamente preenchidas por famílias residentes. Neste dia, eu geralmente era acordado pelas badaladas dos sinos e corria para ter meu café sossegado. Quando apareci no balcão, Vlado fez sua foto. Eu estava sonolento, espiando para saber se todas as mesas já haviam sido ocupadas, quando de repente surge aquele menino de uns 6 anos na sacada e me fotografa.
Isto aconteceu algumas vezes ao longo daquela semana e o que era uma brincadeira começou a me incomodar. Como eu passava os dias em Alhambra acompanhando a restauração do Palácio Nazaríes, chegava em casa exausto e esquecia a brincadeira.
Na segunda-feira, fui acordado antes dos sinos pela voz de Yúsuf. Ele estava nervoso e falava um espanhol truncado apesar de ter saído do Marrocos há uns dez anos. Ao lado do hotel havia uma cadeia de lojas marroquinas e Vlado ao fotografar alguma coisa deixou a máquina cair sobre o toldo da loja de Yúsuf. Ele era bravo mas tinha bom coração, esbravejava para cima com a câmera na mão enquanto o menino o olhava assustado e choroso. Acabei descendo, conversei com ele e peguei a câmera de volta.
Fui até o quarto do garoto para entregar a maquina. Eu esperava encontrar adultos loiros de olhos claros, mas não. Quem me recebeu foi um casal de Sevilha. Contei-lhes o que havia acontecido e devolvi a câmera. Eles chamaram Vlado que me agradeceu com uma foto. Voltei para meu quarto intrigado com aquela situação. O que estaria fazendo um casal de espanhóis com cinco crianças russas em Granada?
Naquele dia não olhei para a fotografia, deixei-a sobre a mesa e fui me preparar para trabalhar. A cena do casal com os meninos me veio a cabeça varias vezes, mas eu não encontrava uma resposta. Há pouca amizade no mundo, sobretudo entre adultos e crianças, menos ainda se elas forem estrangeiras.
A noite fui a sacada olhar a praça. No verão muitos ficam nas ruas até a madrugada. A cidade é encantadora nesta época. Eu esperava que Vlado aparecesse com sua máquina, mas isso não aconteceu. Peguei a foto e vi que nela não havia foco só movimento embaçado, a silhueta do meu corpo descontinuada pela luzes dos lampiões do hotel.
- Foto de criança!
Eu queria encontrar algo mais que pudesse explicar o que significava aquela situação. Será que eles estariam traficando crianças? Eu não teria como conversar com os meninos porque eu não falo russo. Decidi me aproximar dos adultos.
No sábado os encontrei no saguão do hotel. Aproximei-me do homem puxando conversa sobre o atentado que acabara de acontecer em Londres. A mulher se mantinha reservada, afastada olhando as crianças. Convidei-os para um café, mas ele me disse que estavam esperando o ônibus para Málaga. As crianças veriam o mar pela primeira vez.
- E no domingo, vocês farão o que?
- Vamos a Alhambra.
- Eu trabalho lá! Domingo é um dia difícil, vocês precisarão de senhas para entrar. Mas eu posso conseguir um passe. Seria um prazer acompanhá-los neste passeio.
- Eu conversarei com minha esposa.
- Fale com ela e deixe uma resposta na recepção do hotel.
A recepcionista me entregou um bilhete que confirmava meu convite.
No dia seguinte acordei antes mesmo dos sinos tocarem. Eu estava com fome e pedi ao garçom que me trouxesse tapas e torradas com azeite. Estes petiscos de peixe são maravilhosos. Antes que eu terminasse a refeição Vlado me viu e saiu correndo em direção. Eu pude olhá-lo e enxergar seu rosto. Nele havia uma história por desvendar, eu pensava: amigos podem surgir de situações incertas.
- Max esta é minha esposa Laura.
- Muito prazer. Martin vocês já tomaram o desjejum?
- Não. Quero te apresentar as crianças. Estes são meus filhos; Antonio e José e seus amigos Vlado, Micha e Leon.
- Eu pensei que todos fossem russos. Seus filhos são parecidos com eles!
- É verdade, no inicio não eram. O convívio tornou possível que uma amizade sólida nascesse entre ele, as crianças não têm etnia. Eles se doam com a alma livre, espontaneamente. Nós adultos esquecemos como se faz. Vamos terminar a refeição, não queremos abusar de sua gentileza.
Quando o ônibus chegou, eu estava confuso. Tudo aquilo que eu havia imaginado não fazia o menor sentido. Eu fiquei envergonhado comigo e propus ser o guia que os conduziria no passeio.
Costumo entrar em Alhambra pelos Jardins dos Adarvares, neles nosso século desaparece. Enquanto as crianças brincavam nos labirintos de Partal, seguimos para Daraxa, lá seria possível sentarmos em torno de uma pequena fonte para conversarmos.
Ficamos alguns minutos em silêncio, pois a beleza era tanta que nos revigorava. Neste jardim eu nunca me senti só. Ele foi projetado para que a luz e o perfume das flores façam companhia a seu visitante. Aqui a única realidade possível é a dos sonhos e a arquitetura serve apenas de suporte a poesia abençoada por Maomé.
Do mesmo modo, Martin e Laura percebiam as necessidades daqueles meninos antes mesmo deles falarem. Essa generosidade criava uma atmosfera que dava mais vida aquele lugar. As pequenas ofertas que eles faziam as crianças as tornavam luminosas, abatendo os obstáculos e desfazendo dificuldades. Em Alhambra percebemos que só Deus é vencedor, jamais os homens. Estar com eles abriu dentro de mim uma porta que eu já havia fechado. Eu sempre me interessei pelas pessoas, mas nunca gostei delas.
Há um detalhe interessante neste lugar. Todos os jardins foram construídos usando técnicas de irrigação para que fosse possível cultivar flores no deserto. Os árabes sabiam criar seus oásis. Por muitas vezes lá caminhei para irrigar meu coração, o Palácio de Al-Hamar era meu continente.
- Há quanto tempo estas crianças estão com vocês?
- Um mês.
- Seus filhos falam russo?
- Somente eu.
- Eles são parentes?
- Não, elas moravam na região onde ocorreu o acidente de Chernobil. A explosão matou a maior parte de suas famílias. Vlado se expôs a explosão da usina e ficou sem enxergar algumas semanas.
- Que coisa horrível! É impressionante como a civilização extrema gera a barbárie extrema. Ainda hoje, o mundo dos homens se mantém constituído em torno da pólvora, da imprensa e do cristianismo. Veja no que deu! Que poder de merda é esse?
- Max, todos que residiam naquela região foram removidos para outros lugares. Famílias viviam ali a seis gerações e o acidente destruiu toda esta história, transformando o lugar em cemitério vivo. O solo está contaminado, o gado, o leite. O urânio come a vida daquela gente. As crianças precisam sair da Bielorrussia pelo menos dois meses por ano, para que eliminem a radiação do corpo.
- Realmente, o homem deve ser inventado a cada dia. Quanto tempo será necessário para que essa radiação desapareça?
- Talvez mil anos. Vlado foi o primeiro a ficar conosco, depois vieram os outros dois. Nós lhe demos esta câmera de presente porque ele entrou em pânico quando foi se despedir de nós. Dizia que o mesmo aconteceria conosco. Desde então, fotografa o que vê, como tentasse preservar tudo que poderia amar. No mundo de Vlado não há mais nada para ser amado porque a radiação para si o que havia.
- Ele não tem a quem recorrer?
- Não. Estes meninos só contam com famílias como a nossa. Na Espanha são cerca de 600 crianças das 3500 que vem para a Europa todos os anos. Eu já havia visitado Alhambra anteriormente. Este lugar tem uma historia semelhante a destas crianças. Os reis católicos quando vieram para cá destruíram uma parte do que existia. Antes deles este lugar servia de refugio para pacíficos e guerreiros. Hoje quando caminhava dentro do Quarto Dourado, compreendi o que o poeta Zamrak escreveu nas suas paredes: “nesta morada a prata fundida escoa entre as pedras, água e mármore se confundem e Deus fala pelo vento”. Aqui eu me sinto singular como as colunas deste quarto. A civilização usa a destruição para prosperar. Infelizmente o que aconteceu na Bielorrussia não se restaurará jamais, Alhambra teve um futuro melhor.
- Eu concordo com você Martin em um aspecto; a inimizade presente entre os homens perdura escondida na radiação que está dentro do corpo de cada uma destas crianças. Contudo, eu discordo quando diz que não há reparo possível. O que você e Laura estão fazendo por estas crianças elas nunca experimentariam se o acidente não tivesse acontecido. A adversidade nos obriga encontrar o que não nos desagrada. Estes meninos crescerão respeitando os estrangeiros que rechaçariam, se desenvolverão amando quem é diferente deles. Eles estão tendo a chance de respeitar quem os acolhe mesmo que não sejam de suas famílias.
A violência de Chernobil serviu para quebrar a estupidez do preconceito que segrega e agride tanta gente. Essa é a prata fundida da qual fala o poeta e que vocês estão oferecendo a estas crianças, pois a compaixão torna menor o sofrimento quando aponta algum sentido para a dor.

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