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terça-feira, 6 de outubro de 2009

A VORACIDADE DAS BESTAS.

- Isto não está certo. Você está equivocado.
- Como equivocado? Vai dizer que você nunca quis chutar o pau da barraca? O cara humilhou-o, fez ele de palhaço! Você queria que ele não reagisse, ficasse calado como otário? Se eu tivesse no lugar dele faria o mesmo.
- Você está maluco, o cara é policial e além disto estava bêbado.
- E daí, o sujeito estava querendo tirar onda, então ele atirou e matou. O corpo ficou no chão esperando o rabecão. Depois dessa ninguém vai querer crescer em cima dele.

- O impacto de um tiro parece que apaga a memória, daí a gente esquece do próximo.
- Talvez não seja o tiro, mas o medo de que uma bala nos atravesse.
- E homem lá tem medo?
- Que bobagem, tempos difíceis! O outdoor com o governador sorrindo estava bem acima do defunto. Eu olho o corpo do morto, a propaganda do governo a seu lado e percebo que tem uma relação entre elas. Meu irmão é a mesma relação que há entre a favela e o asfalto.
A gente só não percebe isto porque nosso coração ficou duro demais, parcial. Vemos todos os dias uma do lado da outra e não conseguimos pensar no pacto que existe entre ambas e que mantém uma tensão.
- Como ying e yang.
- Deixa de falar besteira. Eu digo que o asfalto enquanto aspiração da favela se vale desta para esconder a própria indecência. Melhor dizer excrescência. A pornografia do asfalto fica esquecida enquanto se escuta o funk das cachorras, do mesmo modo que o som do tiro desvia nossa atenção das parcerias que o fabrica. Se a bandidagem não der samba, certamente dará um comercial.
Essa conversa me lembra Federica. Ela ficava enfurecida toda vez que falávamos sobre o dia em que Picasso voltou a Espanha e fez algumas declarações sobre o comunismo. Ele disse que havia deixado de ser comunista, o que poderia ser visto até como sinal de evolução, mas daí a celebrar sua volta do exílio com uma exposição agenciada pelo franquismo! E a Guernica e Barral? Será que ele esqueceu do que viveu?
- Max na época Picasso tinha cerca de 80 anos.
- Quando a fama ou a idade nos faz esquecer quem somos é porque a favela se rendeu ao asfalto, bem como ele a ela. Veja como isto acontece no Brasil, a galhofa e a brincadeira servem para fazer a gente aceitar qualquer coisa seja de político, banqueiro, mecânico ou trombadinha. Ninguém faz qualquer relação entre essa atitude e os tiros que ouvimos diariamente. Esse padrão de aceitação do ilícito virou mania nacional.
- A Senhora Montseny teria posto a boca no trombone em seu programa de rádio.
- Por que estes pactos não são percebidos como tiros? E se os traficantes têm armas por que não as usam para mudar o governo? Ao invés disso, eles promovem a necessidade deste cenário que está aí, fazem com que este governo seja necessário. Os traficantes se tornaram empregados do governo. Isso me lembra o quanto a caridade depende da miséria para existir. Eliminar a miséria seria exterminar a caridade. Acabar com o tráfico seria o mesmo que eliminar este governo que está aí.
As estratégias usadas para produzir esquecimento ficariam em maus lençóis. A França de Bonaparte deixou Victor Hugo no exílio por dezenove anos por ele não ter renunciado suas idéias.
Se olharmos para o que aconteceu com muitos exilados brasileiros, veremos que eles não só esqueceram do que pregavam como rapidamente incorporam os valores que renegavam. O exilado brasileiro se divorciou de sua experiência no exílio para se transformar em alguém da situação. Tanto o sociólogo vaidoso quanto o operário ambicioso são produtos do pacto favela-asfalto.
- Que sina a nossa!
- Eu lá acredito em sina! Está para nascer uma liderança que se dedique aos interesses coletivos e abra mão dos pessoais. Se depender destes homens nós vamos continuar tendo deputados que são ao mesmo tempo investigados por uma de CPI e dela relatores. Isto faz parte deste novo tipo de masculinidade que anda por aí. É a bandalha tomando posse no planalto, é o coroamento da malandragem e da intimidação retratadas pelo traficante. Temos presidentes travestidos de bem intencionados que só pensam em usufruir as mordomias do colonizador, mestiços se dizendo aristocratas, religiosos pedófilos e uma legião de vítimas sociais que descobriram este novo filão para se darem bem. A única diferença entre eles é a data de nascimento.
- O que podemos fazer diante disto?
- Já sei, uma campanha! Vamos colocar adesivos nos carros.
- Não basta.
Como cães de cemitérios, esses caras se alimentam dos espíritos dos mortos. Eles dilaceram a memória de que fomos inquietos um dia, tínhamos fé uns nos outros, éramos capazes de sentir alegria no espírito. Nós acreditávamos que onde havia verdade não haveria corrupção.
Mas nos tornamos civilizados e inventamos a filosofia do progresso como um modo de encobrir a decadência que se instalou desde que passamos a acusar de primitivo o homem selvagem. Enquanto homens de revolveres, herdeiros do bang-bang, passamos a carregar no cartridge holder nosso poder e alma. Passamos a aceitar os tiros com alguma indignação porque sem isto não conseguiríamos manter os pactos necessários para nos conservar no purgatório.
- No inferno você quer dizer!
- Não no purgatório mesmo. Nós não estamos qualificados para entrar no inferno, lá eles são mais criteriosos e rigorosos. Nós seríamos barrados, somos mornos demais!

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