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O QUE SENTIMOS PODE SER FALADO.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

TITÔNIA.

- No seu corpo havia muitas tatuagens, mas dentre todas elas uma me chamou a atenção. Em sua testa, pouco acima das sobrancelhas, estava escrito: caso perdido. Acharia natural se não fosse seu tipo franzino e reservado, sempre tenso. Por vezes ele passava a mão nos cabelos, puxando-os para baixo numa tentativa de esconder aquela marca. Eu sabia pouco sobre ele, apesar de termos estudado muitos anos juntos. Naquela época ele era retraído, mas não lhe faltava alegria nos olhos. De qualquer forma eu me perguntava quem teria feito tal coisa com ele, será que teria sido um desejo seu escrever aquilo no rosto?
- Max, eu sempre achei este cara esquisito.
- Você acha qualquer um esquisito caso não se pareça com você. Eu o acompanhei mais do que outros, não sei se por compaixão ou solidariedade. Ele era um cara sozinho, mas você há de convir que seus desenhos eram ótimos. Sempre havia algum menino que quando apanhava do mais forte ia recuperar sua estima batendo nele. Ele era a lixeira daquela escola, sobre ele eram jogados a fraqueza, o preconceito e tudo o que ninguém gostava em si mesmo.
- Max esse cara já nasceu torto, só você mesmo para ficar perdendo tempo tentando entender o que esse maluco fez. A exceção dos desenhos, ele nunca teve sucesso em nada do que fazia.
- Ethan, de uma coisa você pode estar certo, a vitória sempre tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Todo mundo quer tirar uma casquinha do vitorioso. Agora quando alguma coisa sai errada ninguém quer assumir nada. Esse sujeito nasceu órfão apesar de ter tido pai e mãe. Eu me lembro de tê-lo encontrado varias vezes sozinho empinando pipa no meio do pasto. Ele sempre aparecia com algum ferimento causado pelas folhas de milho. Não era o abandono que me atraía nele, mas a vida querendo se desentortar, se contorcendo e procurando saída. Foi assim que eu me aproximei dele. Naquela época eu tinha uns dezesseis anos e ele dez. Ele não tinha idéia de que o pior estava por vir.
- Nós nunca conversamos sobre isso.
- Certo dia eu fui me encontrar com ele na sua casa. Sua família era proprietária de um sitio onde se plantava milho e soja. Era um belo lugar, mas para chegar até a casa você tinha de atravessar a plantação, por isso eu combinava de encontrá-lo na estrada. Aquele dia ele não estava, então eu fui até sua casa. Quando cheguei perto chamei pelo seu nome várias vezes e quando me aproximei da casa vi o vizinho saindo abotoando as calças e a mãe do Lucio, logo atrás, terminando de fechar o vestido. Eles passaram por mim e nada falaram, eu entrei na casa e vi Lucio sentado no chão com as mãos nos olhos cantarolando alto. Eu levei algum tempo para acalmá-lo e sairmos dali. Ele me disse que o vizinho ameaçou matá-lo caso ele contasse para alguém o que viu. A mãe de Lúcio gostava de se envolver com homens violentos.
- Seus pais eram separados?
- Eles nunca se separaram, mas quem pagava a escola de Lucio era o tal vizinho. Seu pai era um zero a esquerda. Naquele momento eu me senti responsável por ele. Através de seus olhos pude ver tudo aquilo que me disseram existir no inferno. Na expressão de seu rosto encontrei todos os suplícios que tememos, mas que a vida havia reservado exclusivamente para ele. A esperança tinha desaparecido de seu olhar. Nós saímos dali e eu não sabia o que fazer, não sei porque, mas eu o levei para o puteiro, assim foi sua primeira vez. O cheiro, as luzes e a sujeira daquele lugar me faziam crer que naquele lugar seria possível manter alguma ilusão sobre a vida. As putas têm o poder de transmutar o mal em bem, eu sempre as vi como bruxas.
Eu conhecia bem aquelas mulheres e sabia que ali ele poderia encontrar um pouco de conforto. Na época ele tinha uns quatorze anos.
- Cara você levou um menor para zona?
- Você acha que para ele as coisas poderiam piorar? Você é otimista mesmo.
A consciência não fez dele um covarde como havia acontecido conosco. Ele viu o que nenhum de nós conseguiria suportar e não sucumbiu. Ele ainda não enfrentou a morte como nós já fizemos muitas vezes quando nos submetemos. O Lúcio pode ser qualquer coisa menos um covarde.
Ele fez do Mangue sua segunda casa, foi uma época boa.
Eu me lembro que dali em diante ele começou a escrever e alguma esperança preencheu sua vida. Meses depois seu rosto ficou coberto de acnes e a tristeza voltou para lhe fazer companhia; para suportá-la, ele começou a beber. O que escrevia ficava cada vez melhor, mas a critica chamava seus textos de literatura decadente.
- Que cara azarento!
- Eu vejo diferente, acho que vence duas vezes quem vence a si mesmo. Este cara venceu seu avesso quando o transformou em objeto de suas acrobacias. Ele se tornou um acrobata quando se fez escritor. Por outro lado, não havia mulher alguma que desejasse estar com ele, sua expressão ficou repugnante. O pouco amor que havia guardado usou comedidamente para escrever seus textos, através de cada um deles mantinha viva a fé de um dia encontrar sua Titônia, quiçá Beatriz. Por muitos anos eu torci para que isso não acontecesse por saber que caso ele se frustrasse novamente, sua vida perderia o sentido. Até que no terceiro ano do segundo grau ele se apaixona pela garota mais bela da turma. Não havia a menor chance para ele, durante meses foi motivo de deboche e gozação de todos.
Mas parece que o que sentia por ela o fazia superar cada dia vivido, e você sabe que quem supera vence. Lúcio foi vencedor. Ele fez um esforço monstruoso para continuar acreditando que poderia ter aquela mulher, para tanto precisou encontrar nas putas um amor de mãe que o fez sentir-se homem e assim imaginar que seria possível encontrar Titônia.
- Max eu me lembro, ele queria que ela o acompanhasse na festa. Foi um fiasco. No dia da formatura ele estava tão bêbado que enfiou um saco de supermercado na cabeça para esconder o seu rosto coberto de espinhas. Todo mundo se assustou quando o viu. O pior foi que ela dançou com ele depois que cobriu seu rosto, mas dele se afastou quando o manteve descoberto.
- Eu sempre acreditei que o triunfo sem desafios não tem glória, mas com ele os desafios foram em demasia. Eu passei a acompanhá-lo para evitar suas bebedeiras. Foi nesta época que resolveu tatuar na testa a frase: Caso Perdido. Talvez para zombar de si mesmo e com isto encontrar algum poder sobre sua vida. Eu posso imaginar porque ele fazia o que fazia.
- Você sabia o que ele fazia quando desaparecia?
- Não do modo como os jornais noticiaram. Titônia era a única maneira dele se manter vivo. Ela lhe foi tirada dos braços muitas vezes, arrancada com muita violência, aos poucos e em pequenas doses. Lucio tinha raízes muito curtas para sustentá-lo na vida. Nos vendavais seu esforço se tornava descomunal. Ele amava a vida como nenhum de nós conseguira compreender. Eu o ouvia dizer: “te amo vida misteriosa, cheia de choros e regozijos, horas de sorte e dolorosas, se sorte não vais me dar, pois bem ainda tenho tua dor”. Eu conheci Salomé através de seus versos.
- Max ele se deitava com mulheres mortas. Ele roubava os corpos dos necrotérios, isso é doente.
- Ele nunca abriria mão de Titônia, como era impossível procurá-la dentre as vivas lhe restou somente os cemitérios. No dia em que foi pego no necrotério roubando o corpo da mulher morta em acidente, ele escapou e a levou para o mar. Despiu-se, e com ela nos braços se afogou. Para ele a imaginação nunca perdeu a força. Vivendo o que viveu foi pura sabedoria se iludir, no momento em que isto deixou de ser possível ele foi para os braços de sua Titônia, afinal não havia mais razão para continuar buscando.

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