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O QUE SENTIMOS PODE SER FALADO.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

DURMA BEM PAPAI.

- Você teve coragem de dizer isto?

- Tive!

- Eu estava sozinho e não haveria uma outra oportunidade como aquela.

- Rapaz você é louco.

- Você sabe muito pouco de mim para fazer uma afirmação desta.

- Mas você não poderia ter falado deste modo com ele. Se você é o que é deve agradecer a ele, a tudo o que ele fez por você.

- Você vive em um mundo que não é o meu. Eu nasci órfão e você só descobriu isto agora.

- Como nasceu órfão cara você tem família!

- Isto não garante que alguém vá conseguir tornar-se uma pessoa, porque para sentir-se assim você não pode ser uma cópia das gerações que te antecederam. Eu nasci a fórceps e você de cesariana é por isso que você o vê com outros olhos.

- Pode ser.

- Quando me sentei ao lado de minha mãe, eu a vi com um semblante sereno e tranqüilo. Olhando para o rosto de meu pai morto, dormindo sem roncar, eu percebi que o zumbido em meu ouvido havia cessado. Senti um silêncio reconfortante. Ele havia morrido e não fora eu que o havia matado. Morreu em função do modo como viveu. Seu coração havia crescido por ter sido alimentado durante anos de ressentimentos, amarguras e desejo de ser cuidado. O tamanho do seu coração corresponde a dimensão de sua incapacidade de amar.

Eu me sentei e minha mãe me deu um pacote cheio de folhas com escritos. Ela me entregou dizendo que era de meu pai. Eu passei uma parte da madrugada lendo todas elas e descobrindo que havia uma pessoa que também havia morrido com aquele que deveria ter sido meu pai. Eram canções, poemas e crônicas que falavam sobre o que ele sentia enquanto vivia, parecia que só ele havia descido aos infernos, ninguém mais.

Havia letras de sambas de roda falando de amor por mulheres que jamais o haviam amado. Mas como seria possível amar um homem em desespero consigo mesmo, odiá-lo seria sempre mais fácil. Foi assim que conheci meu pai, pela boca de minha mãe.
Ao lado do caixão resgatei um ser humano que não sabia existir dentro de meu pai; mas era só isso que era possível, porque como pai ele fracassou.
Eu pude odiá-lo e tudo que ele fez a mim. Portanto, quando deixei seu corpo naquela cova pude dizer: seu filho da puta, você jamais poderia ter sido pai. Falei isto alto para que todos naquele cemitério pudessem ouvir. Não me senti culpado nem ingrato, finalmente eu encontrei um senso de propriedade dentro de mim que me deu estes olhos de águia.

- Você os tem mesmo!

- Daquele dia em diante encontrei meu lugar na vida. O dia começava a nascer e eu fui até o jardim para respirar um pouco. Eu estava triste até o momento em que comecei a ouvir alguns pássaros contarem. Joguei um pouco mais de grãos no chão. Então começaram a surgir mais pássaros e cada qual mais colorido que o outro. Comecei a me entreter com aquilo tudo e a me deixar levar pelo espetáculo de movimento que estava diante de meus olhos. Era uma dança em que cada qual sabia sua hora de entrar, pegar sua comida e sair. O movimento dos pássaros me fez perceber que mesmo aquele a quem eu havia atribuído tanta importância não escapou da morte.

Talvez agora eu pudesse compreender a perda da experiência de Deus de que Salomé falava. Mesmo que meu pai nunca tenha me dado um presente, sua morte me trouxe a sensação de fazer parte da ciranda humana. Não há homem ou mulher que escape desta perda. Naquele momento esqueci de meu pai morto e agradeci profundamente a generosidade daquela manhã.

A morte de meu pai me aproximou em demasia da vida, talvez bem mais do que eu imaginava.

Não sei por quanto tempo fiquei ali olhando tudo aquilo, mas me senti grato por aquele presente que eu havia acabado de receber.

- Mas você não sente falta dele?

- Não. Sentiria se tivesse sido um homem sábio, mas ele não foi porque se tivesse sido teria conhecido o próprio filho. Eu fui um desconhecido para ele. Parece que só agora a experiência que tenho de mim mesmo corresponde ao que vivi. Eu nunca tive pai, isto só faz sentido com ele morto. Com ele vivo eu me sentia pior.

- Tenho que lhe dizer que estou emocionado com o que ouvi. Nós somos amigos há tanto tempo e eu não imaginava que este foi o caminho que te fez ser quem você é. Acho que nunca estivemos tão perto um do outro. A morte é impiedosa com qualquer imagem que tenhamos criado de nós mesmos e dos outros. Nisto reside sua beleza.

Um comentário:

  1. Penso que a beleza da morte está exatamente no que ela, a morte, propõe. Uma nova vida. Descobrir, recriar, refazer,transformar, renascer...Não há novo sem a dor do velho, do ido.Ainda somos todos órfãos.Ainda...
    Um abraço.
    Lúcia

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